Educação como Resposta Responsável


O Ensino da Gramática
Adriana Martins Modesto
adriana.modesto@hotmail.com
Graduando em Letras/CESJF

Podemos definir a gramática normativa como um conjunto de regras que devem ser seguidas. Ela tem a função de estabelecer regras para o uso da língua
. Sendo, então, a mais usada em salas de aula como forma de padronizar a utilização da língua materna.
 Mikhail Bakhtin vem trazer com seus estudos uma resposta responsável ao ensino da gramática, apresenta a linguagem como produto social e mostra que sua realização se dá através da interação.
Em sua obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin critica duas linhas teóricas do pensamento filosófico e linguístico vigentes: o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato.
Para a primeira linha teórica, o fenômeno da linguagem era um ato significativo de criação individual, sendo o psiquismo individual a fonte da língua. Para essa teoria linguística, a língua é uma atividade que se materializa sob forma de atos de fala. Assim, nada permanece instável nem conserva sua identidade. Os atos de fala constituem-se no fundamento da língua e a língua é vista como produto acabado, um sistema estável. (SOUZA, Vanessa, Entre - Rios Jornal, 2008).

Para o objetivismo abstrato, ao contrário, a fala não é objeto da linguística. Ao contrário, era separada da língua (social), priorizando os elementos constituídos pelas formas normativas da língua, cujo centro organizador situar-se-ia no sistema linguístico: o sistema de forma s fonéticas, gramaticais e lexicais da língua. Supunha ser a língua um produto que o sujeito registra passivamente. Se a língua tem um caráter estável, cabe ao indivíduo assimilá-lo no seu conjunto tal como ele é. O código linguístico seria como um código matemático, racional, só lhe interessando a lógica interna do próprio signo num sistema fechado e desvinculado das significações ideológicas, sendo seu sistema constituído de um fato objetivo externo a consciência individual. (SOUZA, Vanessa, Entre - Rios Jornal, 2008).

Podemos perceber que Bakhtin trás uma visão inovadora, distinta das demais vigentes da sua época:
Bakhtin critica essas duas correntes porque acredita que a linguagem não é um objeto engessado ou algo imóvel, determinado por regras e estruturas ou pelo psiquismo individual. A sua orientação básica da concepção de linguagem é a interação verbal cuja realidade fundamental é seu caráter dialógico, pois toda enunciação é um diálogo, fazendo parte de um processo de comunicação sempre ininterrupto. Para ele, ignorar a natureza social e dialógica a linguagem seria apagar a profunda ligação existente entre a linguagem e a própria vida. (SOUZA, Vanessa, Entre - Rios Jornal, 2008).

Nessa perspectiva, Bakhtin objetiviza um novo olhar no que diz respeito à visão instrumentalista língua materna, não mais impor a língua como um sistema centrado nas técnicas, regras e no individualismo e sim em uma concepção dialógica em que se promove a interação.
De acordo com a concepção dialógica de Mikhail Bakhtin, temos o conceito de gêneros do discurso, que engloba a noção que todo enunciado tem em comum o fato o sujeito a que se remete. E estes são relativamente estáveis, pois se eles não forem estáveis, você não identifica o gênero. E é necessário o conhecimento dos gêneros, pois este conhecimento facilitará um bom desempenho na leitura e na escrita.
Segundo Bakhtin, a riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas, porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana. Os gêneros do discurso incluem de breves réplicas do diálogo cotidiano, do relato do dia-a-dia, a um texto específico, uma tese ou texto oficial. Não dar para contar: notícias, contos, poemas, provérbios, textos de opinião, cartas, crônicas, tirinha, etc.(SOUZA, Vanessa, Entre-Rios Jornal, 2008).
Percebemos que os estudos feitos por Bakhtin e as suas conclusões sobre a linguagem é algo fundamental e de extrema valia em nossas vidas. Com essa visão bakhtiniana passamos a ver que não podemos resumir a língua em apenas um amontoado de técnicas e regras. A língua vai muito, além disso, ela permite a interação com os indivíduos ao nosso redor, com os textos que lemos, etc.
 Não podemos ensinar ao aluno uma gramática pura, descontextualizada, em que o aluno apenas memorize ou decore as regras e identifique-as em frases soltas. E preciso muito mais que isso, é necessário uma contextualização. Para Bakhtin, falar de uma linguagem fora do contexto é falar de uma linguagem morta.
Ainda encontramos muitos resquícios no ensino, que faz uso dessa gramática descontextualizada que promove apenas a “decoreba”. Mas também já encontramos mudanças, podemos exemplificar essa mudança com o novo ENEM, A ideia é justamente reduzir a "decoreba". As questões apresentam as fórmulas necessárias, não significando que seja simplesmente substituir valores, ou escrever regras. Com este tipo de prova, as escolas deverão preparar os alunos para questões mais "inteligentes", favorecendo o desenvolvimento do raciocínio, da interpretação.
 A contextualização a cada dia vem tomando espaço nas provas do ENEM e dos principais vestibulares do país. Mostrando que a forma que se trabalha gramática deve ser mudada. Abre-se um novo olhar em relação ao ensino. E trabalhar com a concepção dialógica, como explica Bakhtin é deixar de lado as regras e técnicas. Enfocando na palavra-chave de Bakhtin: Contexto.

A responsividade bakhtiniana e a proposta freiriana de educação:
aproximações possíveis
Ageu Quintino Mazilão Filho
Aline Aparecida Angelo
Ana Caroline de Almeida
Flávia Aparecida Mendes de Oliveira Cruz

“O existir, isolado do centro emotivo-volitivo único da responsabilidade, é somente um esboço ou um rascunho, uma variante possível, não reconhecida, do existir singular; somente através da participação responsável do ato singular pode-se sair das infinitas variantes do rascunho e reescrever a própria vida, de uma vez por todas, na forma de uma versão definitiva” (BAKHTIN, 2010, p. 102).
“O operário precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania que não se constrói apenas com sua eficácia técnica mas também com sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais humana” (FREIRE, 1996, p. 102).
O presente texto tem como objetivo fazer algumas aproximações entre as propostas de educação de Paulo Freire e de responsividade em Bakhtin. A idéia da escrita deste texto tem origem nas reflexões e discussões realizadas no âmbito do Grupo de Estudos Críticos do Discurso Pedagógico - GECDiP da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), criado com o objetivo de estudar a Teoria da Enunciação na obra de Bakhtin. Trata-se de um grupo composto por professores, estudantes de Mestrado em Educação e estudantes de graduação em Pedagogia, que desenvolvem pesquisa na área de educação e, assim, procuram dialogar suas reflexões com o campo teórico Bakhtiniano. No decorrer das discussões foram muitas as aproximações feitas entre Bakhtin e Paulo Freire, pelo fato de ambos destacarem em suas obras entendimentos semelhantes. Assim, tentaremos aqui resgatar um pouco dessas discussões levantadas no grupo e aprofundar nosso debate sobre a responsividade bakhtiniana pensando ao mesmo tempo na concepção de educação proposta por Paulo Freire.
            Como estudantes de Mestrado em Educação, tendo em vista nossas pesquisas e seus sujeitos, consideramos importante comentar sobre a responsabilidade ética e estética na forma de escrever e interpretar nossos dados. Sobre esse aspecto Bakhtin (2010) alerta a necessidade de compreender o objeto (sujeitos) de pesquisa de maneira participativa, ética, responsável e reflexiva, para não pensarmos que o nosso conhecimento teórico dará conta de explicar, em forma de verdade, o mundo real, que é histórico, inacabado e passível a várias interpretações. Ou seja, “tudo que é teoricamente concebível não é mais que um aspecto” (Idem, p. 53). E, isso também nos ajuda a refletir sobre a forma responsável como nos colocamos nos trabalhos que escrevemos, ao realizar comparações, análises e aproximações entre um campo teórico e outro.
            O presente texto é apenas uma amostra entre tantas aproximações e interpretações possíveis para relacionar dois autores como Paulo Freire e Bakhtin, com especial atenção na questão da responsividade, portanto, na relação com o próximo apregoada por estes autores, uma relação que apresenta o “outro” como elemento indispensável para a realização do “eu”. Sobre tal relação social, cabe a contribuição para nós muito esclarecedora de Augusto Ponzio – que, talvez tenha sido italiano no sentido intelectual do termo, por demonstrar suas simpatias pelo Renascimento em suas analogias – ao afirmar que “a Revolução Bakhtiniana consiste em deslocar o centro, como em Copérnico, deslocando o centro da Terra em relação ao sol. E o sol é o próximo, é a luz do outro”. No mesmo sentido nos é útil também outro marxista de possíveis aproximações a Bakhtin e Freire, Antônio Gramsci, quando afirma: “Creio que agora me... reformei, conciliando em meu espírito Renascimento e Reforma, utilizando esses dois termos que, me parece, simbolizam muito bem, em grandes linhas, todo movimento das civilizações” (GRAMSCI apud NOSELLA, 2004, p. 143).
Paulo Freire também deixa claro que é dialética a questão – como o movimento de Renascimento e Reforma para Gramsci –, o processo de transformação não pode deixar de vir de fora, e também não pode deixar de partir de dentro, o educador necessita do educando, assim como o educando necessita do educador, ambos se educam. “Em suma, em toda enunciação, por mais insignificante que seja, renova-se sem cessar essa síntese dialética viva entre o psíquico e o ideológico, entre a vida interior e a vida exterior” (BAKHTIN, 1995, p. 66). Freire explica que “o inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez seres éticos” (FREIRE, 1996, p. 59), e cobra nossa responsabilidade quando afirma que “não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos” (Idem, p. 17).             Wanderley Geraldi, contribuindo no entendimento do futuro como centro de gravidade das decisões do presente para Freire e Bakhtin, chama atenção para o fato de que “talvez sejam estes os ensinamentos maiores de Paulo Freire e Mikhail Bakhtin: a grandeza da inconclusão humana e a partilha de um futuro em que a diferença sobrepuje a desigualdade. Por isso, a importância para ambos da ética, da estética e da política” (GERALDI, 2004, p. 51). Para Freire, que via a educação como um ato político e um ato de conhecimento, por isso mesmo, como um ato criador, uma prática consciente capaz de escrever, reescrever, transformar o mundo, a ética é um saber e uma postura necessária para aqueles que exercem uma prática educativa, pois para ele essa tem de ser “um testemunho rigoroso de decência e de pureza” (FREIRE, 1996, p. 33) e cabe ao educador saber que “as palavras a que falta a corporeidade do exemplo pouco ou nada valem” (Idem p. 34).
Essa postura ética do educador destacada por Paulo Freire dialoga com o que Bakhtin chama de responsividade através do ato. Para Bakhtin, o ato é orientado em duas direções diferentes: a singularidade irrepetível e a unidade objetiva, abstrata. A concepção de ato nessas duas direções pode ser compreendida quando Bakhtin analisa a relação entre arte e vida, afirmando que “a ciência, a arte e a vida adquirem unidade somente na pessoa que a incorpora na sua unidade” (PONZIO, 2010, p. 21). Todavia essa unidade exige uma “responsabilidade especial”, que decorre da pertença a um todo, a um determinado setor da cultura, a um certo papel e função e, portanto, uma responsabilidade delimitada, definida, referida a identidade reiterável do indivíduo objetivo. Segundo Ponzio, do outro lado da “responsabilidade moral”, uma “responsabilidade absoluta”, sem limite, sem álibi, sem desculpa, que por si só se torna único, irrepetível o ato, enquanto responsabilidade não transferível do indivíduo (Idem). O próprio Bakhtin evidencia tal idéia ao afirmar que:

“um pensamento participativo é precisamente a compreensão emotivo-volitiva do existir como evento na sua singularidade concreta, sob a base do não-álibi no existir. Isto é, é um pensamento que age e se refere a si mesmo como o único ator responsável” (BAKHTIN, 2010, p. 102).
Na perspectiva da educação freiriana relacionada à responsividade bakhtiniana, podemos considerar que o educador, através de uma postura ética e responsável possibilitada pela compreensão emotivo-volitiva do existir como evento único e irrepetível, materializada no seu ato (ação educativa), concretiza uma ligação entre “cultura e vida, entre consciência cultural e consciência viva”, nos termos de Bakhtin. Freire deixa claro que, sendo a educação a alavanca das mudanças sociais por modelar almas e recriar corações, o processo de transformação é uma questão dialética, que não pode deixar de vir de fora, e também não pode deixar de partir de dentro, como aqui já apontamos na relação com o outro:

“nenhum de nós está só no mundo. Cada um de nós é um ser no mundo, com o mundo e com os outros. Viver ou encarnar esta constatação evidente, enquanto educador ou educadora, significa reconhecer nos outros o direito de dizer a sua palavra, direito deles de falar a que corresponde o nosso dever de escutar” (FREIRE, 2009, p. 26).
            Neste sentido, a atenção de Bakhtin como filósofo da linguagem que permite a comunicação transformadora, apregoada pela proposta educativa freiriana encontra também respaldo na filosofia de Paulo Freire quando afirma que “a linguagem e a realidade se prendem dinamicamente” (Idem, p. 11).  E a linguagem é composta de palavras que, na educação devem ser preferencialmente as “palavras do Povo, grávidas de mundo. [...] codificações, que são representações da realidade” (Idem, p. 20), concordando assim com Bakhtin quando afirma ser cada signo ideológico “um fragmento material dessa realidade” (BAKHTIN, 1995, p. 33). E “é neste sentido que a leitura crítica da realidade, [...] pode constituir-se num instrumento para o que Gramsci chamaria de ação contra-hegemônica” (FREIRE, 2009, p. 21). “Agora já não é possível texto sem contexto” (Idem, p. 30).
            Na perspectiva dialógica, sociointeracionista da linguagem e da interação de Bakhtin, os interlocutores vão construindo sentidos e significados segundo as relações que cada um mantém com a língua, com o tema o qual se fala e escreve,  ouve ou lê, segundo as relações que os interlocutores mantêm entre si e ainda de acordo com o contexto social em que a interlocução ocorre. É nesse processo interacional, que os sujeitos constroem uma relação dialógica, marcada por diferentes vozes (BAKHTIN, 1995). A palavra é dialógica por natureza e “se transforma em uma arena de lutas de vozes, que situadas em diferentes posições, querem ser ouvidas por outras vozes” (BRANDÃO, 2004, p. 9). Assim, não podemos deixar de considerar que “o signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes” (BAKHTIN, 1995, p. 46) e que “o conflito parteja a nossa consciência. Negá-lo é desconhecer os mais mínimos pormenores da experiência vital e social. Fugir a ele é ajudar a preservar o status quo” (FREIRE, 2008, p. 64).

Referências Bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail M., (V. N. Volochínov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora HUCITEC, 1995.
BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do Ato Responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. São Paulo: Editora da Unicamp. 2004
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Editora Olho d’água, 2008.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2009.
GERALDI, João Wanderley . Paulo Freire e Mikhail Bakhtin - o encontro que não houve. In: CORTEZÃO, Luiza; MACEDO, Eunice; NUNES, Rosa; GERALDI, João Wanderley; ROMÃO, João Eustáquio; FREIRE, Abreu; TRINDADE, Rui. (Org.). Diálogos através de Paulo Freire. 3 ed. Porto - Portugal: Edição Instituto Paulo Freire de Portugal e Centro de Recursos Paulo Freire da FPCE, 2004.
NOSELLA, Paollo. A escola de Gramsci. São Paulo: Cortez, 2004.
PONZIO, Augusto. A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo (introdução). In: BAKHTIN, Mikhail M. Para uma Filosofia do Ato Responsável. Tradução: Valdemir Miollo & Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.

Prisioneiros do cotidiano: Brasil e Japão
Alain Kenji Kanai[1]

A nossa educação, entendida a concepção de educação da maneira mais ampla possível (cultural, política ou acadêmica), faz com que nos tornemos prisioneiros do cotidiano. Nós somos criados por ela de forma que lembremos os produtos fabricados em massa. Dois compositores, uma delas brasileira e o outro japonês, tratam desse assunto em suas canções, com a finalidade de retratar a sociedade de cada um de seus países, respectivamente, Brasil e Japão: Pitty e Wowaka. Aqui, refletiremos junto com eles sobre a questão colocada a partir de duas canções, uma de cada autor. Comecemos por Pitty:

Admirável Chip Novo

Pane no sistema, alguém me desconfigurou
Aonde estão meus olhos de robô?
Eu não sabia, eu não tinha percebido
Eu sempre achei que era vivo
Parafuso e fluído em lugar de articulação
Até achava que aqui batia um coração
Nada é orgânico, é tudo programado
E eu achando que tinha me libertado...
Mas lá vem eles novamente e eu sei o que vão fazer:
Reinstalar o sistema

Refrão:
Pense, fale, compre, beba
Leia, vote não se esqueça
Use, seja, ouça, diga
Tenha, more, gaste e viva
Não sinhô, sim sinhô, não sinhô, sim sinhô...
           
            Pitty, com sua canção “Admirável chip novo” (2003), critica a educação brasileira dizendo que a sociedade percebe que está virando “robô”, como aparece na letra. O educador sempre consegue re-implantar as ideologias as quais mais convêm para o sistema, uma vez que o professor é agente que deveria educar, mas trabalha como representante do Governo, uma vez que a escola é um dos “Aparelhos Ideológicos do Estado”, segundo Althisser. Mesmo assim na letra, o sujeito quer sair da rotina e do programa para ele traçado. Por isso nega ao seu senhor, resiste, reflete, grita a todos sobre “esquema” sistêmico. Ao mesmo tempo em que o sujeito da canção apresenta esperança ou ideal de mudança, quando pensa conquistar sua humanidade e liberdade, é surpreendido por pessoas que representam o sistema e que voltam a enquadrá-lo socialmente, o que é metaforizado pela expressão “Reinstalar o sistema”. As necessidades e desejos que se seguem aparentemente tão humanos, colocados no imperativo como aparecem na canção, na verdade, surgem como parte da programação sistêmica e colabora para camuflar/alienar a situação, uma vez que aparentam transmitir uma vontade típica do sujeito, mas até suas vontades são programadas.
            Quando escutamos a canção seguidamente, é quase imperceptível onde ela começa e termina, o que transmite uma idéia circular, sem saídas e sempre repetível.
            Segundo a letra, a sociedade não percebe que não vive por vontade própria, mas sim por uma educação quase que dogmática, o que faz com que o sujeito não tenha vontade própria e viva de forma programada ou robótica, como Pitty canta no refrão.
            Mas, o que isso tem a ver com educação? Diretamente ou de maneira institucional, nada. Mas, indiretamente, tudo, pois podemos entender “Admirável Chip Novo” como uma espécie de resposta da educação (cultura) brasileira, uma vez que esta é uma das responsáveis pela vida programada de forma robotizada e repetível na sociedade. E mesmo que a sociedade queira sair dessa rotina pré-estabelecida, muitas vezes, a educação, que deveria instaurar o senso crítico no sujeito, por meio da escola, vista como instituição formal representante do Estado, aliena-o e o enquadra ao atribuir notas e avaliar as ações humanas em série, de maneira quantitativa e por meio de “múltiplas escolhas” sem brechas (logo, sem escolhas) para vozes outras que não aquelas “programadas”.
            Na educação japonesa, a mesma temática aparece. Vejamos a letra de uma das canções compostas por Wowaka[2] traduzida por nós:

Reversive doll (Boneca reversível)[3]

Três anos atrás, atingiram-me
Convidada por uma voz sem voz
Sempre fugindo da música que é tão importante
A linha simples e inútil que
Cansei de esticar e o fim disso
Mordi o som arrogante e joguei fora cuspindo

Durante três segundos, num mundo em que paralisa
O psicológico vai embaraçando,
Dispensando a partida que estava de frente e me fez andar
Muitas vezes foi assim
Fui vendida,
Mesmo zoando de jogar fora
O senso de preço egocêntrico[4]
Fica perseguindo

“Murmurei uma resposta errada
que eu não tenho jeito”
Mesmo dizendo tal coisa
Não vai ter ouvidos para escutar não é

São negócios que já começou. Tudo?
Não tem coisas que perdi
Ah... Já cansei.
O boneco que ficou arrogante
Dança, roda, salta

Para todos os lados!

Refrão:
Só quero dizer que amo
Fiquei enfileirando os maços de som
Agora como que o amor
Se esvazia e some?
“‘Odeio’ tropeçou” estava
Falando.
De acordo com este horário
No três fui correndo
No quarto que não tem nada fiquei imaginando, imaginando

Três anos atrás, atingiram-me
Convidada por uma voz sem voz
Três anos depois com a caneta que dei estive traçando na suas costas
Como que, com um traço simples e sem sentido
Consegui conectar e fiquei pensando
Exibindo a arrogância gananciosa e os caminhos se fecham

Ah... As coisas todas
Guardei no quarto que vai se afundando
Com um cumprimento de costas
Vou enrolando com as palavras a noite que chora[5]

“Agora, a partir daqui por favor,
pode fazer como preferir”
Como ficou?
E daí em diante ficou um pouco desaparecido

Quem é que rodopiou tanto
Disseminando esse sentimento
Mesmo escutando isso
Você não consegue interpretar?

São negócios que já começou. Tudo?
Não tem coisas que perdi
“Aa.. que sufoco.”
Brinco, abandono, recolho, giro e giro.[6]

Refrão:
Só quero dizer que amo
Fiquei enfileirando os maços de som
Como que agora o amor
Se esvazia e some?

“‘Odeio’ tropeçou” estava
Falando.
De acordo com este horário
No três fui correndo
No quarto que não tem nada fiquei imaginando, imaginando

Apenas a palavra “amo”
Quero afundar junto ao som
Assim que se faz o sentimento, só isso[7]
Colocado e diz imprudentemente

Verdade que vai desmoronar o “odeio”
Virei um boneco que só berra
No três fui fugindo

No céu que não tem nada só, é, último.

            A letra “Reversive Doll” versa sobre uma pessoa perseguida pela sociedade e que não consegue ser ela mesma, apesar de muita batalha. No final, ela se revela ao ouvinte como uma boneca.
            O início da canção trata do passado do sujeito e informa que a boneca foi atingida por uma “voz sem voz” que, ao nosso ver, representa a voz da sociedade. Não adianta a tentativa de mudança dessa vida robotizada, pois ela é perseguida até o final do enunciado da canção. O ponto de vista do sujeito jamais é aceito e ele sofre, por querer ter sua voz ouvida, pois há perseguição social todo o tempo.
            Após o primeiro refrão, o sujeito já se encontra cansado de correr atrás dos seus ideais e se rende à educação dogmática vivida e imposta pela sociedade. Por mais que os outros da canção lhe ofereçam a liberdade, trata-se de uma liberdade aparente, logo, sufocante, pois o sujeito fica preso àquele formato que lhe obrigam seguir. Nos refrões, fica mais visível o desejo do sujeito da canção: ele quer apenas declarar o seu amor ao sujeito amado, mas, numa sociedade preconceituosa, que impõe seus ideais e impede a pessoa de se expressar de forma livre, sem remorso ou vergonha, o que lhe resta é imaginar. No final, como dissemos, o sujeito se revela uma marionete e apenas grita: “vou destruir o que odeio”, o que retrata o resultado de uma educação repressora imposta pela sociedade.
            A educação atual desenvolvida na sociedade, não apenas na escola, mas cotidianamente (com os pais, na igreja, em cursos, grupos de amigos, etc.), seja no Japão ou no Brasil, transforma o povo em robô ou boneco. A idéia de disciplina é o grande problema da questão, pois disciplinar significa domesticar e não educar. Com a ênfase no que Foucault chama de “docilização dos corpos selvagens”, a educação dogmática e opressora transforma os sujeitos sociais em prisioneiros do cotidiano.
            Todavia, não é apenas responsabilidade da sociedade a educação dos sujeitos, mas dos próprios sujeitos, também responsáveis pelas situações em que se encontra a sociedade e por aquelas em que se encontram os sujeitos das canções em seus desfechos. Em ambos os casos, os sujeitos se rendem à opressão, sem lutar até o fim, aceitando a disciplina imposta pela sociedade, sem resistência. E essa resposta conformada de seus comportamentos é que justifica ou, melhor, mantém a sociedade como está. Como diz Bakhtin: “Nada de citar a ‘inspiração’ para justificar a irresponsabilidade. A inspiração que ignora a vida e é ela mesma ignorada pela vida não é inspiração (...)”. O sujeito não pode justificar o seu rendimento à opressão, pois a escolha final foi do próprio sujeito, sua resposta. Assim, fica o questionamento: a educação imposta é uma educação responsiva? Se todo ato é dialógico, como nos ensina o Círculo russo, é porque todo enunciado é responsivo. E se todo enunciado é responsivo é porque a comunicação verbal é ativa e os sujeitos (eu-outro), mesmo que aparentemente não respondam, emitem sempre uma resposta. E se não há álibi da existência, como afirma o filósofo russo, a aceitação do sujeito à essa ordem educacional, social, política, econômica e cultural reflete e refrata, de alguma maneira, alguma(s) das camadas sociais vigentes e garantem a hegemonia hierárquica ideológica e a alienação imperante. Onde se encontra a educação? Poderíamos chamá-la de disciplinarização.

Bibliografia:
BAKHTIN, M. “Arte e responsabilidade”. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2007
BAKHTIN, M. M. / VOLOCHINOV. Discurso na vida discurso na arte. Versão acadêmica traduzida por Carlos Alberto Faraco.
PITTY. “Admirável Chip Novo”. Admirável Chip Novo. São Paulo: Deckdisk, 2003. Disponível em http://www.pitty.com.br/#page=disco. Acesso em 08 de setembro de 2011 às 04h50.
TINOCO, Robson Coelho; ALEXANDRIA, Marília de. “Poemas Música e Dialogias: novos processos melopoéticos”. Mimeo sem referência.
WOWAKA. “Reversive Doll”. Seven Girls’ Discord. Tókio: Tora no ana, 2010. Disponível em http://hinichijourecords.com/release/sevengirls.html Acesso em 08 de setembro às 04h55.

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A ética e a estética no discurso dos professores formadores de professores.
Alda Mendes BAFFA
aldambaffa@osite.com.br
GEPEC – Unicamp

                                   “ O outro está continuamente nos acabando” (Bakhtin, 2000)
            Vivenciando a educação de diferentes lugares (professora alfabetizadora, coordenadora pedagógica, diretora escolar, professora universitária e pós-graduação) sempre tive como grande objetivo de estudo a formação de professores.
            A formação docente sempre foi (e será) tema importante nos debates educacionais atrelada a ideia que o instrumento na mesma é um dos meios de melhorar a qualidade do ensino no pais, formando um sujeito pensante. E assim não foi feito diferente neste estudo que agora apresento, esperando compartilhar com meus interlocutores as experiências vividas em sala de aula, tendo como meta principal a formação de professores intermediada pela linguagem, pois, somos sujeitos constituídos por ela.
            Trabalho com formação de professores há 16 anos e a linguagem e o discurso dos professores formadores de professores mudou de uns tempos para cá. Contextualizando a formação de professores no Brasil intermediado pela linguagem, segundo estudo elaborado por esta pesquisadora notamos ao entrevistar os professores formados nas décadas de 70-80 que durante sua formação ouviram um discurso fechado autoritário no qual se ouvia só uma voz:  a do professor que os estava formando. Não havia abertura, o abraço acolhedor às contrapalavras dos seus alunos.
Eram freqüentes, em sala de aula, frases como estas:
- Cala a boca e senta !
- Não me interessa sua opinião !
- Você sabe com quem está falando !
- Vou fazer deste jeito e pronto. Vocês só copiem !
- Aluno que pergunta muito atrasa o meu planejamento.!
Ao relatar suas experiências, os professores formados com este discurso “monológico” no qual só se ouvia uma voz (do professor) e refletindo sob sua responsabilidade ao formar novos professores (décadas de 90-2000) usam, outro tipo de discurso, segundo a referida pesquisa,: um discurso onde se ouve a voz dos seus alunos. Assim ouvimos as seguintes frases nas entrevistas realizadas:
- Analisem o texto e emitam suas opiniões sobre o assunto. Deem boas razões para pensarem assim!
- Vamos recortar e fazer juntos o próximo desenho!
- O que você pensa sobre este parágrafo !
Assim na polifonia de vozes destes  novos discursos estavam se formando os novos professores do Centro Específico de Formação de Aperfeiçoamento de Magistério (CEFAM) na cidade de Santo André, curso infelizmente instinto em 2003 ( nova LDB 1996).
            Perceberam os professores formadores da década 1990-2000 que era preciso pensar. Os alunos devem ser chamados a pensar, pois segundo, Bakhtin (2010): “somente o ato de pensar pode ser Ético”. O outro me exige esse pensamento, na formação de um ser ético diferente de mim.
            Não podemos só falar de Ética, mas também da Estética no discurso do professor formador de professores. Segundo Bakhtin (2000) “ uma obra é Estética quando há um acabamento”. Assim a Ética está presente em questões como dialogismo, o processo em si de interação entre professores e alunos. Ao refletir sobre o seu discurso e olhar para si mesmo e para o seu aluno o professor formador de professores avalia seu discurso, sua aula, garantindo o reconhecimento do outro como ser em, continua formação, agindo e fazendo (no sentido Ético de seu ato) ”refletir sobre o agir (elaboração Estética) do acabamento de sua aula.

Referências:
BAKHTIN, Mikhail, Marxismo e filosofia da linguagem, 9ª. edição, São Paulo: Hucitec,1999.
BAKHTIN, Mikhail, Estética da Criação Verbal,, 3ª. edição, São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BAKHTIN, Mikhail, Para uma filosofia do outro responsável,, São Carlos: Pedro&João Editores,2010.
BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da Universidade estadual de Campinas, 2001.
CLARK, Katerina e HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Pratica E|ducativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998
GERALDI, João Wanderley, Portos de Passagem. 4ª.. edição.São Paulo: Martins Fontes, 1997,
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REPRESENTAÇÃO: OLHAR QUE RE(CRIA)
Alene Caroline (Universidade Federal do Pará)
alenecaroline@hotmail.com
Amanda Carvalho (Universidade Federal do Pará)
amandacarvalhovale@hotmail.com

Se os professores ou alunos usarem o poder para reconstruir o conhecimento na sala de aula, então eles saberiam usar o poder para reconstruir a sociedade. A estrutura do conhecimento oficial é também a estrutura da autoridade social. Paulo Freire (1987: 10)

     Percebemos que a criança tem uma capacidade incomparável de refazer tudo o que os adultos fazem, principalmente aqueles que elas vêem como seus heróis. Pais, professores, amigos são alvos fáceis para criança olhar e refazer o que esses fazem.
     Poderíamos, assim, dizer que ela imita os outros ao seu redor. Mas será que isso é de fato real? Digo que mais do que imitar, a criança cria também. Ela mistura todo o conhecimento e percepção de mundo adquirido com o que ela “imita” do outro. Ela se torna uma re(criadora) do viver adulto ou do meio social no qual ela está inserida.
     Vigotsky fala a respeito disso, quando diz que o desenvolvimento da criança se dá de fora para dentro, sendo o meio social no qual ela está inserida o fator principal para esse desenvolvimento.
     Muitos pais ou responsáveis se sentem na obrigação de repreender a criança por tal fato, com a ideia de que ao fazer isso irão melhorar seu crescimento natural.
     Não é difícil acreditar que essa é uma idéia errada, se partimos que o funcionamento social dá origem ao desenvolvimento individual.
     Cada criança sendo um ser humano único e significativo tem sua forma de olhar e participar da sociedade em que vive. Isso as faz diferentes uma das outras, mas não há como negar essa predisposição que as igualam: O ato de criar, a forma de olhar o mundo ao seu redor, sendo capazes de re-criar tudo o que vêem, criando assim personagens para si.

Figura 01 e 02:

As relações dialógicas do universo infantil são constituídas do embate entre a sua realidade familiar e a sala de aula, portanto cabe a esses pais e ainda mais ao professor inserir-se nesse universo.
Dois enunciados distante um do outro, tanto no tempo quanto no espaço, que nada sabem um sobre o outro, no confronto dos sentidos revelam relações dialógicas, se entre elas, há ao menos alguma convergência de sentidos. (BAKHTIN, Estética da criação Verbal p. 307-335)

      Uma criança pobre não deve ser vista apenas como alguém carente ou inferior, mas como alguém que convive em uma determinada cultura. Cabe ao professor inserir-se na realidade do aluno a partir do campo de visão do mesmo, partindo de onde a criança está para o desenvolvimento de outras potencialidades.
      Mais fácil agora seria afirmar que esse imaginário criativo infantil é um ponto positivo para sua educação, já que desenvolvimento e educação não são dois processos independentes, eles relacionam-se como conteúdo e forma do mesmo processo.
A situação social do desenvolvimento, que é o ponto de partida para todas as mudanças dinâmicas que ocorrem no desenvolvimento nesse período, define completamente as formas e caminho que a criança segue – conforme adquire, cada vez mais, novos traços de personalidade – a partir da atividade social, a principal fonte de desenvolvimento. Esse é o caminho pelo qual o social se transforma no indivíduo. (VIGOTSKY, 1982/1984, vol. 4 p. 258-259)

      Estudar a perspectiva histórica cultural ajuda o professor a compreender melhor aquilo que a criança trás para a sala de aula e trás também uma proximidade maior do profissional com a criança, não a enclausurando a uma realidade oposta em demasia da sua.
      Para Vygotsky desenvolvimento cognitivo está diretamente relacionado com a base cultural de cada criança. Sendo assim, o saber construído em sala de aula não deve ser uma ruptura com o que a criança já trás para a sala de aula, mas uma soma que os leve a novos conhecimentos.
       Bakhtin diz que a dialogia é uma relação de forças onde não há a morte de uma convivência, há interação entre as mesmas, as duas forças se transformam de alguma maneira.
Daí uma atitude diferente do professor: ele vai se aproximar da criança achando que ela tem algo a revelar que eu não sei. Enquanto com aquelas outras teorias, eu sempre me aproximava da criança como se eu já tivesse um saber que ela não sabe, que ela não detêm. (BAKHTIN)

      Segundo Vigotsky, as práticas educativas formais e informais são meios sociais para organizar uma situação de vida que promova o desenvolvimento mental dessa criança.
      Produzir desde a infância um olhar diferenciado, criar maneiras para que elas possam ver os seus heróis em si mesmos é um jeito dinâmico e indispensável de fazer tais crianças desenvolverem habilidades que refletirão no seu modo de viver e ver futuramente.
     Produzir ao longo de seu processo de desenvolvimento essa representatividade é de grande valia para aguçar sua sensibilidade estética em relação ao toda em que vive.
Se corretamente organizada, a educação permitirá à criança desenvolver-se intelectualmente e criará toda uma série de processos de desenvolvimento que seriam impossíveis sem a educação. A educação revela-se, portanto, um aspecto internamente necessário e universal do processo de desenvolvimento, na criança, das características históricas do homem, e ao de suas características naturais. (VYGOTSKY, 1956, p. 450)
          
     A linguagem também passa a ser um ponto crucial, sendo parte da sociedade como elemento básico na vida social. O discurso faz parte desse desenvolver, já que ele é a própria linguagem como prática social, pois é mediante ele que os indivíduos constroem sua realidade social e agem no mundo. Da mesma forma a criança precisará dessa linguagem para aprender e apreender o todo que nos rodeia.
O ponto mais significativo é que o elemento linguagem se tornou, em certos pontos chave, mais saliente, mais importante do que costumava ser, e na verdade, aspecto crucial das transformações sociais que estão acontecendo – nada faz sentido sem que pensemos na linguagem. (FAIRCLOUGH – 2003: 203)

   Trabalhar a representatividade e a linguagem – que, a meu ver, se completam de forma única e dependente, pois a linguagem esta presente nessa representatividade de alguma forma – faz parte do crescimento intelectual da criança, proporcionando a esta esse olhar re(criador) que é tanto dito aqui.
     Cabe, assim, ao professor – que está atento a aprendizagem do aluno – promover uma interação na sala de aula, do outro com o outro, da representação com suas variadas formas de linguagem. Assim, professor e aluno poderão se “enxergar” melhor nessa troca.

O excedente de visão é o broto em que repousa a forma e de onde ela desabrocha como uma flor. Mas para que esse broto efetivamente desabroche na flor concludente, urge que o excedente de minha visão complete o horizonte do outro individuo contemplando sem perder a originalidade deste. Eu devo entrar em empatia com esse outro individuo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente de minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento. (Bakhtin – pag.23)

     O outro e suas experiências de vida são tão importantes para mim quanto eu e minha experiência de vida são para ele. A partir do momento em que o professor leva isto em consideração, ele assume a responsabilidade de educar o aluno, assumindo a importância do ponto de vista desse indivíduo. Dessa forma, é possível desenvolver o olhar – quando digo olhar, me refiro a ele tanto do aspecto social, cultural quanto extraposicional – da criança em consideração a sua cultura e seu meio social, educando o aluno de maneira responsiva.
     É a partir daí que mundos se cruzam, olhares se encontram, formando um todo único e um único todo, capazes de olhar, diferenciar e ao mesmo tempo igualar a sociedade da qual participamos.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      
 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Palavras e contrapalavras: Conversando sobre os trabalhos de Bakhtin. In GRUPO DE ESTUDO DOS GÊNEROS DO DISCURSO (GEGe). São Carlos (SP): Pedro & João, 2010.
PAPA, Solange Maria de Barros. Prática pedagógica emancipatória: O professor reflexivo em processo de mudança. São Carlos (SP): Pedro & João, 2008.
DANIELS, Harry (org.) et al. Vygotsky em foco: Pressupostos e Desdobramentos. 2° edição – Campinas (SP): Papirus, 1995, p. 121-166.
FREITAS, Maria Tereza A. In: O pensamento de Vygotsky e Bakhtin no Brasil / Maria Tereza A. Freitas – 2° edição – Campinas (SP): Papirus, 1994. (Coleção magistério, formação e trabalho pedagógico) p. 82-95.
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A pesquisa nas Ciências Humanas: compreendendo este percurso sob a perspectiva dialógica.
Amanda Sangy Quiossa – amandaquiossa@hotmail.com
Mestranda em Educação – PPGE/UFJF

INTRODUÇÃO
A pesquisa acadêmica também deve ser percebida como um gênero de discurso, uma vez que ela se constitui em uma forma específica de comunicação composta pelos três elementos fundamentais apontados por Bakhtin, são eles: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Segundo Bakhtin (p.279, 2003):
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua — recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais —, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional.

Os trabalhos acadêmicos se constituem sempre a partir de referenciais teóricos, com os quais os autores dialogam, concordando ou refutando o que foi lido. As produções acadêmicas, sempre buscam gerar um conhecimento novo, porém se pautando em teorias e trabalhos já existentes. Um exemplo desta prática é a revisão bibliográfica, que se faz recorrente no processo de construção das pesquisas. Estas estão sempre relacionadas àquilo que foi produzido anteriormente, no sentido bakhtiniano, se constituem como respostas aos enunciados anteriores.O conceito de dialogismo na obra bakhtiniana, se faz pertinente no processo de compreensão da construção das pesquisas acadêmica, uma vez que compreende a produção dos enunciados de forma elaborada, não desconsiderando a singularidade dos sujeitos – nesse sentido os enunciados são individuais, porém, os compreendendo como sociais, como respostas a enunciados anteriores que se dirigem a determinados destinatários.
A ideia da produção das pesquisas estar sempre relacionada a enunciados anteriores, significa ainda, que elas estão sempre condicionadas às escolhas do seu autor, às leituras e influências que pautaram a sua formação e a sua forma de compreender o mundo. Sendo assim, as pesquisas devem ser entendidas sempre, enquanto pontos de vista, enquanto uma resposta possível na cadeia dos enunciados.
Para refletir sobre esta cadeia de enunciados este trecho de Bakhtin se faz importante (BAKHTIN, 2003, p.275):
Os limites de cada enunciado concreto como unidade de comunicação discursiva são definidos pela alternância dos sujeitos do discurso, ou seja, pela alternância dos falantes. Todo enunciado – da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano ao grande romance ou tratado científico – tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensão ativamente responsiva silenciosa do outro ou, por último, uma ação responsiva baseada nessa compreensão). O falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva.

Para refletirmos sobre o processo de produção das pesquisas acredito que seja importante compreendermos a forma como elas são desenvolvidas no tocante a metodologia. Os referenciais da pesquisa podem se diferenciar um do outro sob o ponto de vista da finalidade da investigação, da realidade, da relação do pesquisador com o objeto de pesquisa e do produto final. Dentre as perspectivas existentes podemos citar: a positivista, a interpretativista, a crítica e a histórico-cultural. Acredito que a última seja a que mais se relaciona com a ideia da produção do conhecimento como algo parcial e subjetivo, a partir do lugar ocupado pelo seu enunciador no processo dialógico em que se dá esta construção.
Irei, de forma sucinta, apresentar estas perspectivas e realizar uma reflexão sobre a utilização delas nos trabalhos científicos em Ciências Humanas, tendo como referência o dialogismo bakhtiano, que considera que para que um enunciador construa um discurso -compreendo a pesquisa acadêmica como um discurso, um enunciado, ele leva em conta o discurso de outrem, que está presente no seu.

PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS
Começarei apresentando a perspectiva denominada de positivista, a qual tem como principal característica o controle do processo investigativo e a formulação de leis gerais. Sob este ponto de vista, a realidade é tida como objetiva. Esta vertente é muito utilizada na pesquisa quantitativa. No texto Metodologia das ciências humanas, inserido no livro Estética da criação verbal (2003), Bakhtin traz conceitos que servem como crítica esta perspectiva, utilizada com mais frequência nas ciências exatas e naturais. Trabalha-se com a ideia de objetividade na pesquisa para a produção de um conhecimento verdadeiro.Acredita-se na possibilidade da não intervenção do autor na análise dos dados pesquisados e na consequente objetividade no processo de investigação. Alguns conceitos desenvolvidos no texto supracitado, como o de sentido (p. 398), de contexto dialógico (p.410), de influência do contexto extratextual (p. 406), de tonalidade (p. 403) mostram que a objetividade pretendida por esta perspectiva, torna-se muitas vezes, impossível de ser alcançada.
Nas Ciências Humanas, a pesquisa constitui-se em algo tão sério quanto nas Ciências Exatas. O que as diferencia substancialmente é a compreensão do que é fazer pesquisa, que se ancora em bases diferenciadas. Nas ciências humanas, principalmente na pesquisa qualitativa, o pesquisador não trabalha com a ideia de exatidão, mas com a de interpretação.
Segundo Bakhtin,
A investigação se torna interrogação e conversa, isto é, diálogo. Nós não perguntamos à natureza e ela não nos responde. Colocamos as perguntas para nós mesmos e de certo modo organizamos a observação ou a experiência para obtermos a resposta. Quando estudamos o homem, procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu significado (BAKHTIN, 2003, p. 319).
No que se refere à questão da interpretação, podemos citar a existência de uma perspectiva que é totalmente baseada nesta ideia, a perspectiva interpretativista. Esta tem como finalidade de investigação a compreensão e a interpretação. A realidade não é tida como algo apreensível diretamente, mas é uma construção dos sujeitos em interação com a realidade. A relação do pesquisador com o objeto de pesquisa se dá de forma que são valorizados os fatores subjetivos que marcam a construção de significados. Os valores do pesquisador influenciam na seleção do problema, da teoria e do método. O produto final são análises indutivas e qualitativas, uma vez que o pesquisador é o construtor da realidade pesquisada.
Esta perspectiva se aproxima da histórico-cultural, porém, uma das diferenças é que nesta última acredita-se que a pesquisa acontece SOBRE o sujeito e não COM o sujeito. Na perspectiva histórico-cultural o sujeito investigado é entendido como alguém que modifica o pesquisador, que fala e interpreta a realidade a partir de um lugar específico e, que por isso, realiza a pesquisa de forma subjetiva. Desta forma, o pesquisador também pode ser compreendido como sujeito, que exerce influencia sobre as conclusões da pesquisa.
Outra vertente é a perspectiva crítica, que surge quando a pesquisa-ação, passa a adquirir maior força no cenário investigativo. Segundo essa concepção as pesquisas têm a intenção, além de compreender, intervir na realidade, de forma política e engajada. Nesse tipo de pesquisa, se lida com o coletivo, não com o individual, com um sujeito. A partir da análise de determinada realidade, é feita uma proposta de intervenção, de mudança.
É importante ter clareza de que a utilização destas perspectivas se dá de acordo com a necessidade e interesse do pesquisador. Sendo assim, não devemos entendê-las sob o ponto de vista evolutivo. Na arqueologia, por exemplo, geralmente a perspectiva interpretativista se justifica mais do que a positivista, tendo em vista que os objetos de pesquisa são artefatos de outro tempo histórico, que precisam ser analisados e interpretados pelo pesquisador.
Por fim irei tratar da perspectiva histórico-cultural, que se faz relevante dentro das Ciências Humanas, uma vez que compreende a forma de produção de conhecimento como algo social, valorizando as relações entre os sujeitos. Desta forma, os papéis do pesquisador e dos sujeitos que estão sendo pesquisados são ressignificados, de modo que a pesquisa se dá com o sujeito e não apenas sobre o sujeito. A teoria da enunciação de Bakhtin se fazimportante para esta perspectiva, na medida em que considera a interação como algo importante no estudo de fenômenos humanos.
Maria Teresa Freitas apresenta a perspectiva histórico-cultural, como (2003, p. 26):
Um caminho significativo para uma forma outra de produzir conhecimento no campo das Ciências Humanas. Ao compreender que o psiquismo é constituído no social, num processo interativo possibilitado pela linguagem, abre novas perspectivas para o desenvolvimento de alternativas metodológicas que superem as dicotomias externo/interno, social/individual. Ao assumir o caráter histórico-cultural do objeto de estudo e do próprio conhecimento como uma construção que se realiza entre sujeitos, essa abordagem consegue opor aos limites estreitos da objetividade uma visão humana da construção do conhecimento.
        
Para isso, a partir de conceitos bakhtinianos, a autora destaca a importância da observação mediada, do grupo focal reflexivo e da entrevista dialógica na pesquisa em Ciências Humanas. Sobre esta última estratégia, Maria Teresa coloca que ela deve ser realizada numa perspectiva de interação verbal entre entrevistador e entrevistado, tendo como objetivo a mútua compreensão (FREITAS,2003, p. 34).
No texto Mikhail Bakhtin e as ciências humanas: sobre o ato de pesquisar, também é colocada a questão do encontro entre sujeitos no processo de pesquisa. Para Solange Jobim e Souza (2011, p.1):
Ao levar em conta a particularidade do encontro do pesquisador com o seu outro e, consequentemente, a especificidade do conhecimento que pode ser gerado a partir desta condição, o que se destaca é a produção de um conhecimento inevitavelmente dialógico e alteritário. Para Bakhtin há que se considerar a complexidade do ato bilateral e da profundidade do conhecimento que se constitui e se revela na relação dialógica eu-outro.
       
No texto Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas Marilia Amorim traz uma síntese da teoria dialógica de Bakhtin e as suas consequências para a pesquisa em Ciências Humanas. Com base nestas ideias, a autora percebe o texto como um lugar de produção e de circulação de conhecimentos, uma vez que pensa que a escrita da pesquisa não se reduz a uma simples transcrição de conhecimentos produzidos em situação de campo. Sendo assim, uma questão que se coloca importante para Amorim é a relação estabelecida entre o pesquisador e o outro. Neste sentido, ela destaca a importância de se compreender as diferentes vozes presentes em um texto, para se entender de forma crítica as pesquisas em Ciências Humanas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Bakhtin a produção de conhecimento tem relação com a vida, sendo um processo que deve ser pautado na responsabilidade. Desta forma, acredito na importância de refletirmos sobre o processo de produção científica, tendo a clareza de que, os trabalhos acadêmicos são produções e, por tanto, se constituem enquanto pontos de vista, enquanto produções dialógicas, que se dão a partir de palavras alheias. Pensar a produção destes textos como enunciados, dentro de uma cadeia dialógica, significa compreender que eles não representam uma única verdade, absoluta e irrefutável, mas representam o processo de compreensão em que o seu autor, através das suas palavras, produz uma réplica a enunciados anteriores, uma forma de compreensão ativa. Sendo assim, os conceitos de significado e sentido, presentes no pensamento bakhtiniano, se fazem relevantes para se pensar este caráter provisório da produção de conhecimento. 
A perspectiva histórico-cultural seconstitui em uma forma de se fazer pesquisas em Ciências Humanas, que, considera os universos particulares investigados como inseridos na esfera social. Além disso, a partir do pensamento de Bakhtin, estes enunciados são compreendidos como uma forma de resposta a um enunciado anterior, o que se relaciona com o conceito de responsividade, o qual, segundo Bakhtin (2003) se constitui na compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo. Este é sempre acompanhado de uma atitude responsiva ativa, uma vez que toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz. A importância desta metodologia se dá também, uma vez que há a valorização do papel ativo dos participantes das pesquisas e do investigador que, atua como ouvinte, recebe e compreende a significação de um discurso e adota simultaneamente, para com esse discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar (Bakhtin, 2003).

REFERÊNCIAS:
AMORIM, M. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas. In: Cadernos de Pesquisa, n 116, p. 7-19, Julho 2002.
BAKHTIN, M. Metodologia das ciências humanas. IN: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003a.
BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. IN: Estética da criação verbal.  São Paulo: Martins Fontes, 2003b.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 13ª Ed. São Paulo: Hucitec, 2009.
FIORIM, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
FREITAS, M.T. A perspectiva sócio histórica: uma visão humana da construção do conhecimento. In: Ciências Humanas e Pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. FREITAS. M.T.; JOBIM. S.; KRAMER. S. (Orgs.). São Paulo. Cortez, 2003. p. 26-38.     
JOBIM, S. Mikhail Bakhtin e as ciências humanas: sobre o ato de pesquisar. In: Escola, Tecnologias digitais e Cinema. FREITAS. M.T. (Org.). Juiz de Fora. Editora UFJF, 2011. (no prelo).

A pesquisa com crianças numa perspectiva bakhtiniana
Nome: Ana Letícia Duin Tavares
Instituição: Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

O objetivo deste trabalho é refletir sobre a concepção de criança e o papel do pesquisador na investigação com crianças, tomando como base a teoria de linguagem de Bakhtin. Esta abordagem teórica foi considerada significativa para se pensar na ampliação do debate a cerca do lugar da criança e do adulto na sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Mikhail Bakhtin; criança; linguagem, pesquisa

Adotar como enfoque teórico o conceito de linguagem de Bakhtin na pesquisa com crianças demanda refletir a cerca das contribuições dessa abordagem na construção de uma concepção de criança e no papel do pesquisador frente à responsabilidade com sua formação e a dos sujeitos envolvidos na pesquisa.
Os estudos que venho realizando no âmbito do grupo de pesquisa Práticas de Leitura na educação infantil e na passagem ao ensino fundamental (NUPEL-UFJF) têm evidenciado o fato de que no cenário de sala de aula as produções discursivas apresentam peculiaridades que lhe são próprias. No processo de interação, as crianças expressam suas dúvidas, interesses, compreensões, etc. para buscar sentido às atividades que realizam, processo ao qual está relacionado ao que Bakhtin (2009) denomina de compreensão ativa. Ou seja, no ato de compreender já está implícito uma resposta. Para o referido autor,
Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. [...] Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p.136-137)

Considerar a voz da criança e sua capacidade de atribuição de sentido às suas ações e aos seus contextos significa concebê-la enquanto um ator social. Isso “implica o reconhecimento da capacidade de produção simbólica por parte das crianças e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas.” (PINTO; SARMENTO, 1997, p. 20).
A construção de culturas pelas crianças acontece nas interações sociais que estas estabelecem, por meio da linguagem.  Ao fazer esta afirmação tomo como base Bakhtin, que investigou a linguagem em uma abordagem dinâmica e concreta, concebendo-a como um fenômeno vivo, concretizado pela enunciação. Para este autor, a enunciação
“[...] é um puro produto da interação social, quer se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada comunidade linguística.” (BAKHTIN, 2009, p.126).

Adotar esta relação entre linguagem e interação social proposta por Bakhtin possibilita compreender a criança nos acontecimentos que estão na vida, pois é nas relações entre as pessoas, no campo do discurso, que se situam as disputas, os acordos e as constantes negociações de sentidos. Segundo este autor, o sentido é
potencialmente infinito, mas pode atualizar-se somente em contato com outro sentido (do outro), ainda que seja com uma pergunta do discurso interior do sujeito da compreensão. Ele deve sempre contatar com outro sentido para revelar os novos elementos da sua perenidade (como palavra revela os seus significados somente no contexto). Um sentido atual não pertence a um (só) sentido mas tão somente a dois sentidos que se encontraram e contataram. Não pode haver “sentido em si” – ele só existe para outro sentido, isto é, só existe com ele. Não pode haver um sentido único, ele está sempre situado entre os sentidos, é um elo na cadeia dos sentidos, a única que pode existir realmente em sua totalidade. Na vida histórica essa cadeia cresce infinitamente e por isso cada elo seu isolado se renova mais e mais, como que torna a nascer. (BAKHTIN, 2003, p.382).

  A interação social na perspectiva bakhtiniana é considerada como uma condição inevitável e necessária de inserção social do indivíduo enquanto participante de um processo histórico e cultural que o produz e é, dialeticamente, também por ele produzido. Neste sentido, a interação é compreendida como condição de possibilidade de existência do sujeito, porque este só se constitui como tal na relação com os outros.  Bakhtin enfatiza este aspecto ao afirmar que
Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vêm-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe, etc.) e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que servirão para a formatação original da representação que terei de mim mesmo. (BAKHTIN, 2003, p.373).

Desta forma, a importância do outro pode servir como tomada de consciência do lugar que o pesquisador ocupa no ato de pesquisar com crianças. Segundo Freitas (2003, p. 29), “considerar a pessoa investigada como sujeito implica compreendê-la como possuidora de uma voz reveladora da capacidade de construir um conhecimento sobre sua realidade que a torna co-participante do processo de pesquisa.”
O pesquisador pode buscar o encontro com o outro (criança) e compartilhar experiências, uma vez que a criança deixa de ser vista como objeto e passa a ser alguém que confronta suas palavras com a do pesquisador, exigindo-lhe respostas. A pesquisa se configura, assim, como um acontecimento no mundo, que se efetiva entre os sujeitos. E o modo de produzir conhecimento se traduz no processo de pesquisar com a criança e não mais pesquisar sobre ela, fazendo com que a relação entre crianças e adulto-pesquisador se constitua como um acontecimento que adquire vida no ato de pesquisar e compreender o outro. (SOUZA; PEREIRA; SALGADO, 2009).
Esta outra forma de estabelecer a relação entre pesquisador e criança no contexto da pesquisa pode se refletir também no cenário mais amplo das relações entre adultos e crianças, quando entendemos que “o outro é o lugar da busca de sentido e da condição de existência, mas também é o lugar da incompletude e da provisoriedade. Esta perspectiva interroga e traz a tona o inacabamento permanente do sujeito, melhor dizendo, do vir-a-ser da condição do homem no mundo”. (FREITAS et al, apud SOUZA; PEREIRA; SALGADO, 2009, p.4).
            Conceber o ser humano como incompleto requer criticar a ideia de adulto instalada na sociedade, como um indivíduo acabado e, que por isso, deve ser imitado opondo-se à criança, entendida como um ser inferior. Esta desigualdade na relação adulto e criança ainda está fortemente presente no contexto escolar. Muitas vezes, as práticas pedagógicas estão mais ligadas às concepções educacionais do adulto do que das necessidades das crianças. Este fato está relacionado à compreensão da criança baseada apenas em suas capacidades cognitivas. Desta forma, a escola não vê a criança e se debruça apenas sobre seus processos, enfatizando métodos e técnicas, privando-as de um espaço onde podem ocorrer interações livres e trocas de experiências.
Jens Qvortrup citado por Pinto e Sarmento (1997) critica uma contradição na relação entre adultos e crianças que exprime-se no fato de
[...] os adultos acreditarem que é bom para as crianças e os pais estarem juntos, mas cada vez mais viverem o seu quotidiano separados uns dos outros; no facto de os adultos valorizarem a espontaneidade das crianças, mas as vidas das crianças serem cada vez mais submetidas às regras das instituições; no facto de os adultos postularem que deve ser dada a prioridade às crianças, mas cada vez mais as decisões políticas e econômicas com efeito na vida das crianças serem tomadas sem as ter em conta; [...] no facto de os adultos concordarem em geral que as crianças devem ser educadas para a liberdade e a democracia, ao mesmo tempo que a organização social dos serviços para a infância assenta geralmente no controle e na disciplina; no facto de, sendo as escolas consideradas pelos adultos como importantes para a sociedade, não ser reconhecido com válido o contributo das crianças para a produção do conhecimento [...]. (PINTO; SARMENTO, 1997, p.13).

            Tendo como base estas reflexões cabe destacar que a concepção de linguagem construída por Bakhtin problematiza as visões a cerca das crianças centradas no adulto que restringe e regra suas vidas. Portanto, ao possibilitar compreender a criança a partir do olhar delas e não somente sobre elas, Bakhtin abre um espaço para se pensar na redefinição do lugar social das crianças e adultos, sejam eles pesquisadores, políticos, pais ou professores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHINOV; V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 13 ed. São Paulo: Hucitec, 2009.
________Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FREITAS, M. T.; SOUZA, S. Jobim e; KRAMER, S. (Org.) Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003.
PINTO, Manuel; SARMENTO, Manuel J. As crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando o campo. In: PINTO, Manuel; SARMENTO, Manuel J. (Cord.) As crianças: contextos e identidades. Coleção infans – Centro de estudos da criança. Universidade do Moiinho, 1997.
SOUZA, Solange Jobim e; PEREIRA, R. M. Ribes; SALGADO, Raquel G. O pesquisador e a criança: dialogismo e alteridade na produção da infância contemporânea. Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas), 2009.
BIBLIOGRAFIA
BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. (Org). São Paulo: Contexto, 2005.
SOUZA, Geraldo Tadeu. A linguagem. In: SOUZA, Geraldo Tadeu. Introdução à teoria do enunciado concreto do círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. 2 ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2002.

A vida vem primeiro
Ana Maria de Campos[8]
UNICAMP – FE - GEPEC
Corinta Maria Grisolia Geraldi[9]
UNICAMP – FE – GEPEC

Houve um tempo em que a terra gemia
E um povo tremia de tanto apanhar
Tanta chibata no lombo que muitos morriam
No mesmo lugar [...]
Liberdade além do horizonte, morreu tanta
Gente de tanto sonhar. Foi Zumbi!
A Princesa Isabel assinou um papel
Dia 13!
Itamar Assumpção

“Esta é uma história verdadeira. A minha história de vida.
Eu nasci em Minas Gerais no lugar chamado Francisco Badaró. Minha mãe conta que quando eu nasci não deu tempo para chamar uma parteira e minha mãe teve eu sozinha. Ela disse que eu parecia uma rosa e todos gostavam muito de mim, por que era a primeira menina na família. Meus pais moravam num sítio muito grande era uma espécie de fazenda e dali tirava todo sustento da família. Naquele tempo não tinha escola na redondeza perto do sítio, só na cidadezinha. Eu tinha muita vontade de aprender a ler, não havia quem a ensinasse. Foi daí que eu me ofereci para trabalhar com uma senhora na cidade de Teófilo Otoni, mais ela só passou o meu nome na escola por que quando tinha que encerar a casa eu não podia ir a escola. A professora nem se importava com as minhas faltas por que ela sabia que, eu era uma menina escrava naquela casa. Enfim eu tinha 12 anos quando, foi ficar com essa família fiquei até aos 14 anos.
Essa família mudou pra outra cidade, e me levou junto com eles, mudamos para Belo Horizonte ela não quis mais me colocar na escola.
Eu tinha muita vontade de estudar
Um dia uma senhora vizinha me viu lavando a calçada da casa descalça, ela ficou muito triste e me perguntou se eu tinha um pagamento eu disse não ela me propôs ir para a casa dela.
Ela disse que me punha numa escola. Então eu comecei a pensar naquela ideia. Eu disse para essa senhora que gostaria de ir para um convento de freiras assim eu poderia aprender a ler e escrever. Então essa senhora me disse que eu tinha que escrever para minha mãe e que ela mesma escrevia para mim eu aceitei a ideia dela. Havia uma nova esperança para mim.
Eu pensava só indo para um convento, assim eu poderia aprender ler e escrever. Mais eu tinha medo de não poder ver mais a minha família eu tinha muitas saudades da minha mãe. Então tive uma ideia vou falar com D. Glorinha que eu quero ir embora para casa. Ela não gostou, disse que não podia me levar embora.
Eu comecei a chorar e ela dava côco na minha cabeça foi dai que lembrei de um fato que tinha acontecido na família dela que uma senhora tinha me contado.
Os pais dela tinha adotado um menino. Essa senhora que me contou era cozinheira dessa família essa senhora disse que um dia o menino desobedeceu eles então disse, essa cozinheira a mãe da D. Glorinha pegou um pedaço de sabão de soda e enfiou na boca do menino fez ele comer tudo esse sabão e o menino passou muito mal e acabou morrendo e foi dai que eu usei de chantagem com a D. Glorinha falei que eu sabia dessa história do menino.
Ela ficou apavorada com que eu tinha dito, e mais que depressa ela me mandou para minha casa. Foi um irmão dela que me levou, e ela escreveu uma carta para minha mãe dizendo que eu estava muito bem e que eu queria ir embora eu fiquei foi feliz indo embora para junto da minha família. O que mais me marcou nessa história foi nas poucas vezes que fui nas aulas eu nem sequer podia levar uma banana para o lanche pois ela não deixava”.

Quando conheci Vitalina[10], no ano de 2005, em um desses encontros inesperados que a vida nos proporciona, estava com mais de sessenta anos de idade. Contou-me que havia voltado a estudar em 2004, no Centro Cultural Poveda[11].
Nossas vidas se aproximaram porque uma das educadoras do Centro Cultural Poveda comentou comigo acerca de sua participação nas aulas de alfabetização de adultos. No ano de 2003 o Centro Poveda iniciou parceria com a Prefeitura Municipal de Campinas criando uma sala de alfabetização de adultos vinculada ao Projeto LETRAVIVA[12]. Fui uma das pessoas responsáveis pela Coordenação do LETRAVIVA, juntamente com Dulcinéia de Fátima Ferreira Pereira, no tempo em que a Secretária Municipal de Educação era a Professora Corinta Maria Grisolia Geraldi.
Nesse projeto a sociedade civil campineira foi convidada a participar, colaborando de diversas maneiras. O Centro Cultural Poveda, como muitas outras instituições, tornou-se parceiro, criando uma classe de alfabetização de jovens e adultos e por esse motivo passei a me encontrar periodicamente com os educadores e educadoras, visto que uma das minhas atribuições era a da formação continuada dos participantes do projeto. A responsável pelo trabalho no Centro Poveda era Guadalupe de la Concha, com quem estabeleci laços fraternos de amizade, o que favoreceu nosso trabalho e a troca de informações sobre os avanços e dificuldades dos educandos e educadores. Trilhando esse caminho encontrei-me com Vitalina.
Por me interessar pelo seu aprendizado da leitura e da escrita começamos a dialogar sobre seus estudos, contudo essa nossa aproximação se deu apenas em 2005 ou 2006, época em que eu já não estava mais na Coordenação do LETRAVIVA, mas encontrava com Vitalina aos domingos, após o culto dominical, pois frequentamos a mesma instituição religiosa de tradição protestante. Em um desses encontros ela entregou-me o depoimento que está no início desse texto. Foi escrito em 12 de outubro de 2010, a lápis, em letra manual, em folhas que foram destacadas de um caderno.
Depois de muito tempo de nossos primeiros contatos contei a ela que havia sido uma das pessoas responsáveis pela Coordenação do LETRAVIVA, o que a deixou muito contente e emocionada! Após alguns dias da nossa conversa, entregou-me uma carta expressando a sua surpresa:

Campinas, 6 de Julho de 2009.
Eu Vitalina Vieira dos Santos estive na casa da irmã Aninha.
Fiquei muito feliz por passar uma tarde com ela, fiquei ainda mais feliz porque foi através dela que eu estou estudando no Centro Cultural Poveda. Sou muito grata por essas senhoras voluntárias que se dedicam a me ensinar, e ensinar também todas aquelas que passam por lá. Não só a Aninha mas também as outras senhoras que também nos ensinam e fazem nós se sentir cidadãs com os mesmos direitos de estudar e saber quais são os nossos direitos dentro da sociedade. Depois que comecei estudar fiquei mais segura para se comunicar com outras pessoas. Tenho orgulho de falar para as pessoas que estou começando estudar. No Centro Cultural Poveda as senhoras não somente ensinam a escrita e a leitura mas também trabalham com a nossa mente como se fosse psicólogas.
Mas também não somente estudar com elas no Centro Cultural e sim se esforçar em casa, para que elas sinta que os trabalhos delas não estão sendo em vão. Lembrando também que temos uma professora de artes plásticas que está nos ensinando a 1ª cultura brasileira. Finalizando quero agradecer todas professoras com um enorme carinho que tenho por todas elas muito obrigado por tudo.
Assinado, Vitalina.

Recebi essa carta como um presente que não poderia deixar de partilhar! Essa pessoa maravilhosa, marcada pela violência de uma sociedade excludente, tem dentro de si um poço de generosidade para repartir. Só de pensar nos percursos escolares tão diversos que nós duas vivemos ao longo de nossas vidas, sinto uma imensa responsabilidade.
A história vivida, escrita com lágrimas e incontornavelmente marcada na pele, denuncia que o papel assinado pela Princesa Isabel não garantiu a liberdade contra a escravização da protagonista e nem de muitos outros milhões de brasileiros, como todos sabemos. Tal qual Vitalina muitas pessoas ainda lutam insistentemente pela liberdade de viver na aurora desse século XXI! Como cantou João Nogueira,

É preciso navegar
Pra poder se esclarecer
Do lado de lá do mar
É preciso ver pra crer
Gente que lutou para se libertar
Ver no amanhã
Novo sol chegar
Ter que trabalhar, reconstruir
Bom futuro há de vir

A crueza da escravização da criança relatada por meio de um olhar retrospectivo e memorialístico da senhora idosa de hoje  mostra que a luta em prol da própria libertação fortaleceu seu espírito, mas não encharcou de tristeza seus sonhos a ponto de imobilizar a construção do presente e do futuro.“Ter que trabalhar, reconstruir, bom futuro há de vir...”. Conforme apresenta Wanderley Geraldi (2003, p. 48) em estudo sobre Paulo Freire e Bakhtin, em citação retirada de ‘Autor e Heroi’: “é somente no futuro que se situa o centro de gravidade efetivo de minha própria autodeterminação”.
Assim, a vida continua sendo de luta para Vitalina. Quem sabe seu nome não seja uma incrível profecia para sua vitalidade e gana! “Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre”! Quase chegamos a ‘ouvir’ a voz de Elis Regina ou Milton Nascimento cantando... E a luta de hoje é pela garantia do direito ao estudo. Vitalina mobiliza suas energias criativas nas aulas do ciclo inicial do ensino fundamental, demonstrando um poder de superação impressionante para demandar da professora que planeje aulas compatíveis com as suas necessidades formativas.
Quando ouço suas histórias sou tomada por uma emoção misturada à perplexidade. Saber que em pleno século XX, uma menina, ainda no início da adolescência, teve que forjar com sua inteligência e perspicácia sua própria alforria, é no mínimo, constrangedor, porém, como alerta Geraldi (2003, p. 41): “Na seriedade superficial e cotidiana de uma imprensa que comenta factos e prega o discurso hegemónico e com pretensões de ser único, os discursos que apontam as desgraças, as misérias e os sofrimentos são ironizados”.
E para intensificar o drama, por conta da ideologia vigente na sociedade capitalista, ela acredita que seu artifício para conseguir se ver livre da escravidão é chantagem! Dialogamos sobre esse assunto, mas essa não é uma questão que se supere com facilidade. Um dos maiores danos para a autoimagem das pessoas é a introjeção e naturalização da inferioridade, por isso, para nós educadoras e educadores, uma das questões fundamentais na relação educativa é lançar luz sobre este processo a fim de colaborar na recuperação da humanidade roubada, como enfatizou Freire (2000, p. 84): “É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidade por sua situação”.
Como sujeito de sua própria história e da história de seu grupo, Vitalina está reconfigurando a sua vida e a vida na cidade. Abrindo brechas onde não havia, continua criando, com muita persistência, o seu lugar e tomando coragem para dizer a sua palavra:
En un régimen de dominación de conciencias, en que los que más trabajan menos pueden decir su palabra, y en que inmensas multitudes ni siquiera tienen condiciones para trabajar, los dominadores mantienen el monopolio de la palabra, con que mistifican, masifican y dominan. En esa situación, los dominados, para decir su palabra, tienen que luchar para tomarla. Aprender a tomarla de los que la retienen y niegan a los demás, es un difícil, pero imprescindible aprendizaje: es “la pedagogía del oprimido” (FIORI, 1973, p. 26, prefacio à edición argentina de Pedagogía del Oprimido).   

Como educadora faço esse destaque porque tenho observado muitos adultos que tiveram os seus direitos educacionais subtraídos, ao chegarem às salas de Educação de Jovens e Adultos – EJA – permanecerem, muitas vezes, em posição de subordinação em relação ao currículo prescrito e preelaborado nas instituições de ensino, também por conta da vida de privação de direitos. Vitalina, ao contrário, expõe sua palavra, demandando da professora o estudo que a habilite para atuar na sociedade da qual participa. Essa atitude propositiva e de partilha da palavra experimentada no encontro com a educadora e com seus colegas de estudo é fundamental para que se viva uma educação responsável, dialógica, acolhedora dos educandos como seres em relação, por isso mesmo produtores dos sentidos para o ato educativo.
Somos responsáveis pela história que criamos. “Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo” (FREIRE, 2003, p. 53).  Partilhando as memórias singulares de Vitalina e as suas contrapalavras, ressignificando seu percurso e suas lutas, acredito que podemos “tomar o futuro como centro de gravidade das decisões do presente” (GERALDI, 2003, p. 47) e tecer novas possibilidades para enfrentar as questões relativas à desigualdade social e a desumanização cotidiana vivida também nos processos educativos.
            Por fim, gostaria de salientar que Vitalina trouxe à tona uma história silenciada, bem como a sua batalha atual por uma escola que dignifique a pessoa humana. Por certo pode nos estimular a sonhar e trabalhar por uma educação humanizadora, dialogal, para todas as pessoas desse país, pois a vida vem primeiro como cantou a poeta:
Vou na vida por inteiro
Vou enquanto ela durar
Sei que a vida vem primeiro
É a vida que eu tenho pra levar

Referências
ASSUMPÇÃO, Itamar. Batuque. Intérprete: Virgínia Rosa. In: ROSA, V. Batuque. São Paulo: Movieplay do Brasil, 1997. 1 CD. Faixa 04.
FIORI, Ernani Maria. Aprender a decir su palabra. In: FREIRE, P. Pedagogía del oprimido. 8. ed. Buenos Aires: Siglo XXI: Tierra Nueva, 1973, p.9-26.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação. São Paulo: UNESP, 2000.
_______. Pedagogia da autonomia.  27. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
GERALDI, João Wanderley. Paulo Freire e Mikhail Bakhtin: o encontro que não houve. In: Diálogos através de Paulo Freire. Col. “Querer Saber” nº 3. Disponível em: <http://www.ipfp.pt/public.html>. Acesso em: 10 set. 2011.
NASCIMENTO, Milton; BRANT, Fernando. Maria, Maria. Intérprete: Milton Nascimento. In: NASCIMENTO, M. Clube da Esquina II. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1978. 2 discos sonoros. Disco 2. Lado B, faixa 08.
NOGUEIRA, João; VESPAR, Geraldo. Lá de Angola. Intérprete: João Nogueira. In: NOGUEIRA, J. Boca do Povo. Rio de Janeiro: Universal, 1980. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 03.
ROSA, Virgínia; SWAMI JR. Vou na vida. Intérprete: Virgínia Rosa. In: ROSA, V. Batuque. São Paulo: Movieplay do Brasil, 1997. 1 CD. Faixa 02.

A DIFÍCIL TAREFA DE AVANÇAR NA DIFICULDADE
Ana Paula Marques Sampaio Pereira
Maria Teresa de Assunção Freitas

Esse texto descreve uma aula de reforço analisada à luz da perspectiva enunciativa de Bakhtin. Nesta aula, realizada em uma sala de uma escola pública no andar térreo e atrás da diretoria, estiveram presentes apenas a aluna Denise[i] e a professora. Denise possui 14 anos de idade e seis reprovações escolares.  Esse reforço é realizado após o término das aulas regulares, no período de onze horas até, no máximo, meio dia.