Política como Ação Responsiva


PROFISSÃO DE TRADUTOR E INTÉRPRETE DA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS e a LIBRAS: SER E NÃO-SER, EIS A QUESTÃO!
Adriane de Castro Menezes Sales
Doutoranda na Universidade Federal de São Carlos – PPGEEs

Todas as palavras evocam uma profissão, um gênero,
uma tendência, um partido, uma obra determinada,
uma pessoa definida, uma geração. [...] Cada palavra
evoca um contexto ou contextos nos quais ela viveu
sua vida socialmente tensa; todas as palavras e
formas são povoadas de intenções. [...] A linguagem
não é um meio neutro que se torne fácil e livremente
a propriedade intencional do falante, ela está povoada
ou superpovoada pelas intenções de outrem. Dominá-la
e submetê-la às próprias intenções e acentos é um
processo difícil e complexo.
Mikhail Bakhtin[i]

Em primeira instancia, cabe considerar que este texto é, em parte, a continuidade de um diálogo iniciado em outro contexto, numa oportunidade de reflexões e significações que resultou na escritura de um trabalho, pensamentos, acerca dos diversos matizes dos discursos sobre ‘inclusão escolar’ quando direcionados para a educação de alunos surdos. Pensar sobre o signo lingüístico como materialidade ideológica, sob a ótica da ética do ato responsável, que emerge do diálogo, da compreensão ativo-responsiva, é um despertar de ressonâncias ideológicas que refletem e refratam os nossos e novos sentidos.
A partir destas premissas é que elegemos como corpus de análise deste texto os discursos constituídos nas políticas públicas referentes à Lei Nº. 10.436/02 (regulamenta a Língua Brasileira de Sinais) e seu embricamento com a Lei Nº. 12.319/10 (regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais – TILS), ou melhor, as desconexões e obscuridades instauradas na concepção e nas práticas relacionadas à Língua de Sinais – que, acima da incoerência teórico-prática entre o dito e o feito dos/nos discursos inclusivos, nos levou a uma grande inquietação: o Decreto nº. 5.626/2005, que instituiu legalmente a “educação bilíngue”, propõe, relativamente a ela, no Cap. VI, art. 22, o trecho abaixo transcrito:
[...] I – escolas e classes de educação bilíngue, abertas a alunos surdos e ouvintes, com professores bilíngues, [...];
II – escolas bilíngues ou escolas comuns da rede regular de ensino, [...] cientes da singularidade lingüística dos alunos surdos, bem como a presença de tradutores e intérpretes de Libras – Língua Portuguesa. (grifos nossos)
Mas, a que se refere a “educação bilíngue”?
E, ainda: quais parâmetros teóricos e práticos utilizar para problematizar e/ou compreender a profissão (função) do “tradutor intérprete”, definida na Lei nº. 12.319/10 (BRASIL, 2010), se a Lei nº. 10.436/2002 (BRASIL, 2002) assim reconhece a Língua Brasileira de Sinais – Libras?
[...] Entende-se como Língua Brasileira de Sinais – Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil (grifos nossos).
A função do tradutor, bem como de uma proposta de educação bilíngue, não são interdependentes à existência e relação entre duas línguas? A função do tradutor está claramente posta: “[...] realizar interpretação das 2 (duas) línguas de maneira simultânea ou consecutiva e proficiência em tradução e interpretação da Libras e da Língua Portuguesa” (BRASIL, 2010). E uma proposta de educação bilíngue? Sem por em discussão fatores considerados como interferentes e/ou intrínsecos nas práticas educativas bilíngues, tais como fatores históricos, sociais, ideológicos, psicológicos, além das relações de poder, ou, ainda, as diversas perspectivas teóricas de desenvolvimento de projetos bilíngues (MEGALE, 2006), em todos os casos é condição sine qua non que existam duas línguas em jogo.
Não se trata de uma roupagem linguística, mas de uma engrenagem discursiva na qual o discurso oficial se materializa com força de lei – à qual as normas de conduta conferem autoridade e poder legitimado, que impõem argumentos de variados contornos para sustentar um pseudo-monolinguismo, justificado, dentre outros, por argumentos de identidade e unidade nacional.
[...] A falácia do decantado monolinguismo nacional brasileiro, a cada dia que passa, fica mais evidente. [...] Nosso País apresenta vários grupos de falantes de outras línguas, caracterizando-se como uma nação alta e ricamente multilíngue. [...] O olho vedado da sociedade em geral para essa realidade, inclusive entre os ditos intelectuais, se mostra mais perverso, porém, em relação à língua dos “sinalizantes” brasileiros. Se não ignorada totalmente, essa forma natural e sofisticada de comunicação, como o fez Agostinho de Hippo Regius12[ii] em relação às crianças mortas sem batismo, é colocada num confortável limbo linguístico, mas limbo! (VEGINI; VEGINI, 2009, p. s/n).
Além disso, estes corpus (leis – documentos oficiais) demarcam lugares e poderes bastante diferentes e divergentes entre os grupos envolvidos e tentam oprimir as diversas e diferentes vozes sociais em relação às tensões e confrontos entre a ideologia dominante e a ideologia dominada. Segundo Cury (2002, p. 246):
O contorno legal indica os direitos, os deveres, as proibições, as possibilidades e os limites de atuação, enfim: regras. Tudo isso possui enorme impacto no cotidiano das pessoas, mesmo que nem sempre elas estejam conscientes de todas as suas implicações e consequências.
Nestes termos, as políticas públicas, como partes de um corte social, são representativas de conjunto de intencionalidades, que solicitam nossa leitura – das “linhas e entrelinhas” – e convocam contra-palavras, ou melhor, ações responsivas. Pensar sobre “[...] a política educacional implica pensar práticas sociais vividas por sujeitos concretos que representam forças sociais diferenciadas e em luta constante” (GARCIA, 2007, p. 132), das quais podem resultar tanto a manutenção e reprodução da ordem social estabelecida, quanto a subversão desta ordem (MIOTELLO, 2005).
[...] as Leis e Documentos oficiais são instrumentos de luta para efetivação dos direitos de cada cidadão. [ainda que se entenda] que os textos legais representam a política e devem ser entendidos como dimensão de um processo contínuo “cujo lócus de poder está constantemente mudando” (SHIROMA; CAMPOS; GARCIA, 2005, p. 433).
Metaforicamente, os textos, em sua interrelação, remontam às diferentes vozes de Babel – onde o horizonte de possibilidades de significação gera luta –, ainda mais latentes, que envolvem relações de força produzidas por cada grupo/vozes em função das suas expectativas sociais particulares – particulares não no sentido de individuais, mas de diferentes planos de relação, ação e reflexão dos agentes sociais envolvidos. Ângulos particulares que, na perspectiva bakhtiniana de singularidade, de sujeito único, ocupam diferentes lugares, com diferentes (por vezes divergentes) leituras do mundo, entre os quais o encontro só seria possível a partir da alteridade.
Para Bakhtin, nos constituímos na relação alteritária com o outro, pois é na alteridade (no encontro) com o outro que temos a possibilidade de ampliar nosso horizonte de sentidos sobre nós mesmos, a partir da visão que o outro nos possibilita, num processo em que, no encontro, cada ser se reflete no outro e refrata-se – fato possível porque cada um ocupa seu lugar exotópico em relação ao outro.
[...] alteridade é a própria possibilidade do meu horizonte, da ampliação do meu horizonte. Eu me vejo no outro! E o outro é um horizonte sem fim para mim. Nele, no outro, há sempre uma nova perspectiva, sempre um novo ângulo no e pelo qual crio e recrio a idéia do eu. Falo idéia prá ser delicadamente fiel (aoeidos) filosófico fenomenológico: eu tenho para mim uma idéia de mim mesma, conforme os olhares dos outros (dos alter egos) essa imagem (eidos) ganha nuances distintas, contornos sutis. (Blogspot - gegelianos[iii])
Compreender o sentido do enunciado vai além da apreensão/compreensão do sinal linguístico, em se tratando de responsividade, é apreender as vozes em relação, considerar a relação entre os elementos que interferem na produção de sentidos dos enunciados, e que podem encontrar-se fora da realidade concreta do momento enunciativo, pois “[...] a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor” (BAKHTIN, 2000, p. 116).
É essencial considerarmos a relação eu/outro, uma vez que a subjetividade é inerente aos sujeitos. Para Bakhtin (2003), o enunciado pressupõe um ato de comunicação social e é a unidade real do discurso. O enunciado se constitui a partir da fala que, em uma situação discursivo/interativa, é representativa da intenção dos falantes (idem).
Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. [...] A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma “contrapalavra” (BAKHTIN, 2003, p. 137).
Consideradas estas particularidades, daremos um passo à frente, um deslocamento para a realidade concreta e cotidiana dos sujeitos envolvidos em nossa discussão, os sujeitos surdos e os tradutores interpretes de língua brasileira de sinais, na tentativa de apreender quais as implicações destes discursos e incongruências nas relações e interações ocorridas no espaço escolar incidem diretamente sobre os TILS e sua participação; envolvimento com os alunos; com a comunidade escolar e para o acesso destes alunos aos conhecimentos e informações acadêmicas e sociais, que constituem os processos de construção de conhecimentos.
Segundo Souza (2007, p. 160), o ato educativo decorre de linguagem...
De dois sujeitos que se falam, se escutam e são falados pelo Outro numa permanente intromissão desse terceiro – o Outro – elemento que põe em cena, do ponto de vista psíquico, “algo” que excede aos dois corpos visíveis – o do estudante e de seu intérprete.
Nesse sentido, e dentro de uma perspectiva estética fundamentada na concepção bakhtiniana, o papel do tradutor é, primeiramente, de aproximação, de conhecimento do e sobre o outro com quem irá (inter)agir, no caso, os tradutores intérpretes de língua de sinais em relação aos professores, alunos surdos e ouvintes. Para tanto,
O primeiro momento da minha atividade estética consiste em identificar-me com o outro: devo experimentar – ver e conhecer – o que ele está experimentando, devo colocar-me em seu lugar, coincidir com ele [...]. Devo assumir o horizonte concreto desse outro, tal como ele o vive (BAKHTIN, 2000, p. 45).
Destacamos a questão não apenas para definir nosso ponto de partida sobre a atividade estética, mas para, neste ensejo, dar ênfase a questões como as discutidas por Sobral (2008a, p. 132):
Cabe ao intérprete conhecer a situação do conjunto de surdos no âmbito da cultura brasileira. Isso apresenta dois aspectos: de um lado, trata-se de uma língua não oral, de uma maneira não oral de perceber, de pensar e de se exprimir, no interior de uma cultura oral e em contato com uma língua oral dominante; de outro, o surdo tem uma dada imagem do interior dessa cultura que nem sempre o respeita [...]. A situação do surdo não é a mesma do ouvinte; não se trata apenas de ter outra língua, mas ter uma língua não oral num ambiente sociocultural oral e de coexistir como surdos num território de ouvintes.
Além destas singularidades, pensar sobre a tradução/interpretação, mediando situações didático-pedagógicas em ambientes educacionais, nos quais circulam informações e conhecimentos das mais diversas naturezas e especificidades, exige do TILS diferentes saberes e condições de atuação, tais como: domínio dos conteúdos escolares em uso, conhecimentos sociais, políticos e culturais, além das idiossincrasias do grupo de alunos e professores com os quais atuará. E a posição a ser ocupada por eles (TILS) não pode se distanciar desta situação concreta – realidade social e histórica.
Apoiados, novamente, em Sobral e seus apontamentos sobre Bakhtin, acreditamos na necessidade de dar acabamento[iv] a nossa discussão, refletindo a tradução, também, como ato ético. Segundo Sobral (2008b, p. 224), a filosofia bakhtiniana do ato ético refere-se à
[...] responsividade ética aos outros sujeitos. Para Bakhtin, “não há álibi na existência”, e os atos do sujeito, sejam ou não voluntários, são responsabilidade sua, ou melhor, “responsibilidade” sua, isto é, responsabilidade pelo ato e responsividade aos outros sujeitos no âmbito das práticas em que são praticados os atos.
O ato da tradução envolve uma escala multidimensional de significantes e significados que desvelam as dimensões, a profundidade e a alta complexidade da sua atuação e a interação verbal, pois tem relação direta com todos os sujeitos que participam destas interações, tanto na constituição de suas identidades quanto de suas subjetividades – além do diálogo, que se constitui uma das mais importantes formas de realização da língua.
Para a efetivação de uma proposta educacional bilíngue são necessárias algumas condições prévias e concomitantes, que têm valor determinante para o êxito do processo. Dentre elas, podem-se enumerar elementos, como estímulo precoce das crianças surdas ao aprendizado da língua de sinais (para o qual não demandam condições especiais de ensino/aprendizagem) para, então, expor as mesmas a situações formais de ensino da língua da comunidade ouvinte (no nosso caso, a língua portuguesa); condições de entrada da língua de sinais no espaço escolar, com status de permanência e não de concessão; além do uso amplo da língua pela comunidade escolar, para que não tenhamos um isolamento e restrição de diálogo e interação apenas entre os pares surdos e deles com os intérpretes.
Enfim, ainda que as possibilidades de desdobramentos e horizontes possíveis de significados acerca destes atos/pensamentos sejam inúmeras, traz-se à baila uma ultima (por hora...) consideração: que o dúbio (re)conhecimento da Libras, pois ainda que nomeada não foi legitimada como Língua Brasileira de Sinais,  dentro da esfera política e ideológica, reforça a imagem de que esta se refere, ou melhor, identifica os sujeitos como “aqueles que são uma minoria lingüística” em relação ao padrão estabelecido na cultura e no meio social, o que intensifica, na maioria das situações observadas, entraves ao uso da Libras por pessoas externas às entidades e comunidades surdas, nas quais incluímos todas as pessoas ligadas direta ou indiretamente a esses sujeitos.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2000. 203 p.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006. 203 p.
BRASIL. Lei Federal n. 10.436 de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e dá outras providências. Acesso em: abril/2010.
______. Lei n 12.319, de 1º de setembro de 2010. Regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS. Acesso em: abril/2011.
CURY, Carlos Roberto Jamil. Direito à educação: direito à igualdade, direito à diferença. Cadernos de Pesquisa. Campinas, SP: Autores Associados, n. 116, pp. 245-262, julho 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100- 15742002000200010&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: julho/2010
GARCIA, Rosalba Maria Cardoso. Reflexões teórico-metodológicas acerca das políticas para a Educação Especial no contexto educacional brasileiro. Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade. Salvador, BA: UNEB, v. 16, n. 27, pp. 131-142, janeiro/junho 2007. Disponível em: <http://www.revistadafaeeba.uneb.br/anteriores/numero27.pdf>. Acesso em: julho/2010.
SHIROMA, Eneida Oto; CAMPOS, Roselane Fátima; GARCIA, Rosalba Maria Cardoso. Decifrar textos para compreender a política: subsídios teórico-metodológicos para análise de documentos. Perspectiva: Revista do Centro de Ciências da Educação. Florianópolis: UFSC, n. 2, pp. 427-446, julho/dezembro 2005. Disponível em: <http://www.perspectiva.ufsc.br/perspectiva_2005_02/11_artigo_eneida_rosela ne_rosalba.pdf>. Acesso em: julho/2010.
SOBRAL, A. U. Dizer o "mesmo" a outros: ensaios sobre tradução. 1. ed. São Paulo: SBS Editora, 2008a. v. 1. 143 p.
_________. O Ato “Responsável”, ou Ato Ético, em Bakhtin, e a Centralidade do Agente. Signum: Estudos Linguisticos, Londrina, n. 11/1, p. 219-235, jul. 2008.
VEGINI, V. ; VEGINI, R. L. . Articuladores sintáticos e flexão verbal num texto produzido por um portador de necessidades especiais. In: II Encontro de Educação: interculturalidade, políticas públicas e Educação escolar, 2009, Rolim de Moura e Vilhena. II Seminário de Educação: interculturalidade, políticas públicas e Educação escolar. Porto Velho : Universidade Federal de Rondônia, 2009

[1] BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4 ed. São Paulo: Editora UNESP, 1998. 418p. (p. 100)
[1] Região da Numídia, Norte da África: 354-430 (referência do texto original).
[1] Disponível em: http://gegelianos.blogspot.com/2008/01/alteridade-parte-ii.html. Acessado em: 27 de janeiro de 2011
[1] Noção de acabamento, também centrada em Bakhtin, na qual “só um outro pode nos dar acabamento e somente nós poderemos dar acabamento a um outro. Cada um de nós se situa num determinado horizonte e necessita do outro para completar o que falta ao nosso horizonte de visão.” (LOPES, 2005)




Espaço público: Ações de afirmação do “eu”
Alan de Luna Fernandes[1]

Devemos pensar o cotidiano como uma constante de situações que compõem a vida. Essas situações sociais, todas políticas, como todas as relações humanas, trazem seus conflitos marcados na linguagem. Linguagem e política caminham intrinsecamente juntas, pois é a partir da linguagem que nos expressamos e, portanto, vivemos as relações humanas. Estas, também políticas. Embora nós, brasileiros, estejamos acostumamos com a cordialidade, algumas expressões verbais muito utilizadas em nossa cultura demonstram a fragilidade dessa expressão cristalizada e revelam a hierarquia sistêmica. Esse é o caso da expressão “sabe com quem está falando?”, que se desenvolve, em situações de conflito, como uma interrogativa autoritária. O uso comum dessa expressão coloca em cheque nosso sistema social baseado na cordialidade, pois ela denota a ação, opressiva, de uma classe sobre outra.
A sociedade brasileira se diz regida por valores de intimidade, consideração e respeito, entretanto, esse traço linguístico evidencia o desequilíbrio social que vivemos. O autoritarismo presente na expressão “sabe com quem está falando?” revela o conflito que permeia nossa sociedade: o diálogo estabelecido de maneira hierárquica, de acordo com os papéis sociais. 
Segundo DaMatta (1997), “O ‘sabe com quem está falando?’ implica sempre uma separação radical e autoritária de duas posições sociais reais ou teoricamente diferenciadas” (DaMatta,p.181). A expressão marca a imposição de um sujeito sobre outro pelo mecanismo linguístico, o que reflete uma separação social e uma ação de afirmação social (de superioridade) do “eu” sobre seu interlocutor.
Nas situações usuais, em nossa sociedade narcísica, o “eu” procura sentir-se importante e, para isso, inferioriza o seu “outro” por meio de seu status social, a fim de se auto-afirmar hierarquicamente – demonstrar poder (como se para ser alguém, o “eu” tivesse, necessariamente, que anular o “outro” ao invés de partir dele, como ocorre, segundo Bakhtin). Sociedades calcadas no capital, como a nossa, fazem o contrário do que prega a filosofia bakhtiniana, pois se centram no “eu” e não sabem re-partir. A mentalidade que impera é a da “Seleção Natural”, de Darwin ou, como está em Quincas Borba, de Machado de Assis: “Ao vencedor, as batatas”. O homem ainda responde ao pensamento racionalista científico dos séculos passados, pois age como nossos ancestrais, “matando” o “outro”, a partir de quem é constituído, para se mostrar “o mais forte”. Instinto de sobrevivência? Mas, sendo o homem um mamífero e, ao mesmo tempo, um sujeito social, o que impera, a biologia ou a sociologia?
A expressão “sabe com quem está falando?” é construção discursiva – de linguagem – dessa relação contraditória de forças biológica e sociológica que habita o sujeito. A nós, imperam os valores sociais, uma vez que o signo é ideológico, segundo Bakhtin/Voloshinov (1997). Assim, tal expressão discursiva se caracteriza como a auto-representação do sujeito “eu”, de seu poder autoritário e hierárquico. DaMatta ilustra algumas situações acerca do uso dessa expressão, das quais destacamos uma:
“1- Num parque de estacionamento de automóveis, o guardador diz ao motorista que não há vaga. O motorista, entretanto, insiste dizendo que as vagas estão ali. Diante da negativa firme do guardador, o motorista diz irritado: ‘Sabe com quem está falando?’ E revela sua identidade de oficial do exército.” (1997, p.208).

Na situação descrita, notamos tratar de um conflito entre duas pessoas, na qual estão retratados sujeitos de grupos sociais distintos: um oficial do exército e um guardador de carros. Mediante o uso da expressão “sabe com quem está falando?” é que o oficial enfatiza sua posição social de poder e status hierárquico “superior” ao guardador de carros. Para se impor, inferioriza o “outro” a fim de reafirmar sua voz, seus valores, seu poder e seu espaço. Apesar da presença de ideologias (de hierarquização social e superiorização da classe), notamos o sujeito consciente do seu ato discursivo e, portanto, responsável (afinal, para Bakhtin, 2003, é “a unidade de consciência que age de maneira responsável”) pela aplicação da expressão utilizada, no lugar, na hora e com o interlocutor que melhor lhe convém, para garantir a saciedade de suas necessidades (ou desejos – no caso, a vaga no estacionamento), de maneira desrespeitosa e sem critério, como ocorre, muitas vezes, no cotidiano.
Sob o ponto de vista ideológico, essa expressão assinala valores imanentes à sociedade capitalista, aqui exemplificada pelo caso brasileiro: o de que um sujeito que ocupa uma determinada posição ou desempenha um papel privilegiado socialmente deve ter prerrogativas de destaque por exercer função tida como “importante”; o de que o sujeito não é valorizado pelo que é, mas pelo lugar que ocupa na sociedade ou por aquilo que possui; o de hierarquia social e subserviência do economicamente mais “fraco” para com o privilegiado naquele dado momento e situação; entre outros. Assim, a expressão marca a afirmação do “eu” pela inferiorização do “outro” no espaço social.
Podemos afirmar que a linguagem é política (uma vez que ideológica, segundo Bakhtin). E, por isso, o indivíduo, concebido como sujeito social, pode ser representado pela linguagem, pois ela reflete e refrata valores sociais a partir de um espaço e de um tempo determinados, logo, em ação, em movimento, na sociedade, via sujeitos que vivenciam suas experiências cotidianas, sempre políticas, de acordo com seus valores, de maneira responsável ou não, mas sempre responsivamente.

Referências bibliográficas:
BAKHTIN, M. “Arte e Responsabilidade”. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, M. / VOLOSHINOV. “Discurso na vide e discurso na arte”. Tradução para fins acadêmicos de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza.
___. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.


 Luiz Inácio: Um discurso Responsivo
Amanda Carvalho (Universidade Federal do Pará)
amandacarvalhovale@hotmail.com
Caroline de Jesus (Universidade Federal do Pará)
carolinenpj@hotmail.com
Daniele da Silva (Universidade Federal do Pará)

Quando se fala em política, a reação mais comum entre as pessoas é a de rejeição. Não tirando a razão desses cidadãos, pois a política brasileira sempre apresentou seus altos e baixos, criando assim uma imagem deplorável.
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Figura 01: Lula discursando quando ainda era operário (Portal13/história do PT)

Em 10 de fevereiro de 1980, Lula fundou o PT, juntamente com outros sindicalistas, intelectuais, políticos e representantes de movimentos sociais. Lula foi eleito em 1986, deputado federal constituinte com a maior votação do país. Concorreu à Presidência da República em 1989, quando foi derrotado no segundo turno por Fernando Collor de Mello, e em 1994 e 1998, quando perdeu para Fernando Henrique Cardoso, em 2002 foi eleito presidente do Brasil com votação recorde de 50 milhões de votos. Reelegeu-se em 2006, vencendo, em segundo turno, o candidato do PSDB, Geraldo Alckimin. Fiel ao estilo que marcou seu governo, Lula despediu-se da Presidência com muito choro e nos braços da multidão, tendo sido o centro das atenções na cerimônia de entrega a faixa à sucessora Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto em 01 de janeiro de 2011.
Apesar do significado inédito do resultado da eleição de 2002, parte de seu sucesso pode ser compreendido a partir das estratégias de discurso utilizadas pelo candidato e sua assessoria. Esses discursos são utilizados em diferentes contextos em que o discurso tem uma importância. Por discurso, pode-se entender o dispositivo da sensação, explicado por Michael Foucault. Esse envolvimento entre emissor e receptor gera um diálogo de confiança entre as partes envolvidas no processo eleitoral. Isso envolve a capacidade do discurso se adaptar à necessidade do emissor. A análise do discurso pode ser definida como o estudo das funções que o conteúdo do discurso pode desempenhar tanto nos receptores especificamente quanto no contexto em geral.
Por outro lado, o discurso pode ser classificado como uma forma de poder, e no caso da candidatura de Lula, uma conquista governamental. Na política, geralmente o discurso visa atingir dois pontos, ou até mesmo a mescla deles, que seriam a linguagem e a ação. Logo, sem linguagem, o discurso é impossível a conquista do voto. É por isso que o emissor do discurso político tem que dispor de armas poderosíssimas para atingir, agradar e tocar o povo, como nenhum outro candidato.
Essa relação que se constrói embasada no discurso depende do carisma, do companheirismo, e do “estar presente” com a massa. Quando essa conexão entre emissor e receptores acontece é porque sem dúvida, as estratégias do discurso tiveram sucesso. Isso prova a capacidade que um político possui ao discursar para uma massa, e mais, fazendo com que esta se sinta envolvida na cena política em que está vivenciando.
Sem dúvida, a ação da mídia é de extrema relevância. Porém, assim como ela ajuda a fornecer uma imagem positiva do candidato, também é responsável pela formação da opinião do povo eleitoreiro. Como no caso de Lula, em que pesquisas que verificavam a aceitação do público apontavam o sucesso de sua campanha eleitoral. Entretanto, suas idéias, seu partido, e até mesmo por questões pessoais, fizeram com que Lula fosse visto como um incompetente e analfabeto. A exemplo disse tem-se o comentário do comentarista Paulo Francis, que o chamou de “ralé”, “besta quadrada”, e disse que se ele chegasse ao poder o país viraria uma grande bosta.
A intenção de Lula era ganhar o carisma do povo. Em 1989, quando o PT lança Lula, a imagem do candidato é igual à de um estereótipo de trabalhador. Sem barba feita, sem terno alinhado, e com uma postura um tanto diferente dos outros candidatos. Já em 1994, Lula começa a se adaptar às normas de comportamento dos que já ocuparam o lugar de Presidente. Todavia, sempre se valendo de um discurso radical. Vale ressaltar que nesta campanha seu resultado nas urnas foi negativo. Porém, em 2002 já com uma mudança em seu discurso, a eleição já era algo pressentido, apenas uma questão de tempo. Parecido com o povo, sem escolaridade superior, já com a barba feita, camisa e gravata, com uma voz amena, um carisma envolvente, Lula consegue atingir diferentes segmentos sociais que também o viam em diferentes aspectos. E foi justamente o embate de idéias dos eleitores e esse jogo de diferentes argumentos, foi o que ajudou o candidato socialista a se eleger.
“[...] Eleger um governo petista significa acabar com a miséria e com a fome que ainda castigam quase 50 milhões de pessoas em nosso país. Significa possibilitar que a grande maioria do povo obtenha a cidadania, que os jovens não tenham que enfrentar as incríveis dificuldades que eu e tantas pessoas passamos na vida. Melhorar o Brasil significa mudar de rumo, afastando o nosso país da situação de vulnerabilidade a que foi levado pela atual política econômica [...] (Pronunciamento quando o Partido dos trabalhadores o lançou como candidato para Presidência da República. -Maio de 2002).

Em seu discurso Lula faz um misto de expressões, usa recursos emotivos, e satiriza o governo de Fernando Henrique Cardoso. Assim como ele se vale de sentimentalismo para alcançar as massas sociais provocando uma maior identificação com esses eleitores. Lula é racional e estratégico ao mostrar aos políticos que pode ser um bom administrador para o Brasil.
“[...] O Brasil quer mudar. Mudar pra crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não é a justiça social que tanto almejamos. Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico [...] ( “Carta ao Povo”) (Junho 2002) .

Em seu pronunciamento, Lula usa perspicácia para que os emissores acreditem no que ele está exclamando. Pode-se notar que neste pronunciamento ele já impõe a ideologia petista como aceitação de todas as camadas sociais. Para convencer de fato, que ele é o melhor candidato a seguir. E ao mesmo tempo usa-se de inúmeras críticas ao governo FHC, “esgotado” e “cansado”, “o Brasil está vivendo um colapso econômico”, são exemplos do que estava sendo passado ao leitor.
Por mais que Lula tenha vindo de uma camada desfavorecida, e seja de fato como o povo, como todos os outros candidatos, ele possuía ambição no que falava, precisava persuadir as camadas pra poder conseguir o que queria.
E a resposta veio com sua eleição e reeleição. Logo, fica mais do que provado o que vários estudiosos afirmam:
Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. (Foucault 1997, p.88).
Os discursos de Lula estão intimamente ligados à interpretação de seus receptores. E que foram estrategicamente montados para persuadir. Porém parte do êxito de seus discursos deve-se ao fato de seus textos passarem a idéia de um cidadão participante da administração do país, independente de sua condição social.

Referência Bibliográfica:
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola 1996.
FOCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 200.
Fontes da Internet:


A escuta como ato responsável em manuais de justiça restaurativa
Ana Beatriz Ferreira Dias – ana.dias@uffs.edu.br.
Professora Assistente I do Curso de Graduação em Letras Português e Espanhol – Licenciatura, da UFFS/ Campus Cerro Largo. Integrante do Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGe) e aluna de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSCar.

            Assim como nesta linha nos encontramos – você eu – por meio de palavras e contrapalavras, em praticamente todos os nossos encontros, desde os mais corriqueiros do dia a dia até aqueles marcados por uma solenidade formal, lá estão elas - as palavras, que, enquanto nos viabilizam um encontro entre sujeitos que buscam completude, constroem e organizam nossas experiências. Neste mundo que vejo, que reconheço como tal, é “mundo já conquistado, já colonizado por palavras, um mundo com uma pesada crosta de discurso” (CALVINO, 2006. p. 143). Fora dessa matéria, então, nada resta, como também garante Ponzio (2010, p. 15): “Não existe comportamento e não existe pensamento, nem tampouco sensação, sentimento, humor, desejo e imaginação que não sejam feitos dessa matéria, a matéria da palavra”.
            Diante desse encontro de palavras, que, por isso, é sempre um encontro entre sujeitos (PONZIO, 2010), há sempre a possibilidade de um encontro com uma palavra autoritária, monológica, fechada, uma palavra que visa à exclusão do outro em nome de sua identidade. Neste caso, podemos afirmar que há um encontro com a palavra que, para Bakhtin (2003), inibe o pensamento de ser mais, bloqueando o seu desenvolvimento, criatividade, liberdade. Trata-se de uma palavra com limitadas condições de contato e combinações que exige “repetição reverente, e não desenvolvimento sucessivo, correções e complementos” (BAKHTIN, 2003, p. 368).
            Diante dessa palavra que tende ao monologismo, há apenas uma possibilidade: limitar-se a ouvir, no sentido, de ouvir, reproduzir como forma de obedecer. Esse parecer ser, então, um tipo de comunicação particular de uma cultura de guerra como a nossa que há séculos incentiva relações sociais que buscam a eliminação do outro, do diferente, como forma de legitimação de um eu egoísta e autoritário. Embora dominante em nossa cultura, esse tipo de encontro não é a única forma de relações verbais que existem. Interessa-nos aqui discutir a procura por uma outra palavra, no sentido atribuído por Ponzio (2010): uma palavra livre em relação às palavras da linguagem oficial, dos lugares comuns, que é outra não porque é “alternativa”, mas sim porque é abertura à alteridade. Estamos falando, pois, de uma palavra singular que faz uma diferença não indiferente, “insubstituível na sua relação com o outro, único, responsavelmente, responsivamente, única para o outro” (Ibid.).
            Compartilhamos com o autor que, independente de ser palavra de outro ou do outro de mim mesmo, essa outra palavra se dá sempre na posição de escuta, no dar tempo ao outro, “o outro de mim e o outro eu” que implica sempre “dar tempo e dar-se tempo”. O escutar, nesse sentido, deixa o outro falar, escolher o que quer dizer, assumindo a contradição e a polifonia constitutiva da linguagem, como defende Ponzio (2010).
            As reflexões que aqui trazemos, ainda em construção e parte de um projeto maior de pesquisa, são uma tentativa de pensar, com base no pensamento do Círculo de Bakhtin e de estudiosos mais contemporâneos ligados a essa perspectiva, como Ponzio e Geraldi, dimensões de práticas de justiça restaurativa ligadas (ou não) a escuta como possibilidade de encontro com a outra palavra. Com isso, pretendemos contribuir com a compreensão e até aperfeiçoamento das interações verbais entre sujeitos cuja relação é marcada por situações de violência, mantendo, para isso, um diálogo produtivo com fundamentos teóricos e metodológicos elaborados pela justiça restaurativa, como as técnicas de Comunicação Não-Violenta (CNV) propostas pelo psicólogo Marshall Rosenberg e utilizada em algumas das experiências dessa nova forma de justiça que vendo implantada no Brasil.
            Para melhor contextualizarmos este estudo, convém definir, em linhas gerais, o compreendemos por justiça restaurativa, bem como estabelecer a relação dessa prática com manuais de formação em justiça restaurativa. Ainda que tenham suas particularidades, as experiências com justiça restaurativa acabam se aproximando em muitos pontos, já que podemos identificá-las como integrantes do movimento restaurativo, um movimento social emergente em várias partes do mundo. Investigando essa diversidade quanto às práticas dessa justiça, Garapon (2001) observa que todas elas buscam, por exemplo, construir relações sociais mais pacíficas, ser sensíveis ao contexto de cada caso, transformar situações adversas em ocasiões para construir um outro modo de existência, reduzir o quadro rígido e abstrato de processos de justiça. Dessa forma, atribui um novo rosto à justiça: “reconstruir a relação no que ela tem de mais concreto”, tendo como “vizinhos homens e carne e osso, não a lei!” (GARAPON, 2001, p. 251).
Diretamente ligada nos dias de hoje à resolução de situações de violência, a justiça restaurativa parece não se reduzir a isso; ela pretende ser uma determinada visão de mundo que, ao rejeitar as nossas relações sociais baseadas em um modelo de dominação, exclusão do outro e de seus sentimentos, se diz muito próxima de uma cultura de paz. Uma série de instâncias vem incorporando práticas restaurativas em ações diárias, dentre elas escolas, instituições de atendimento à infância e à juventude, sistemas de justiça, comunidades, ONGS, etc.
Como marco da introdução de práticas restaurativas no Brasil costuma-se indicar o ano de 2004, quando aconteceu o I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa. A partir desse período, em que muitas experiências de justiça restaurativa passaram a ser sistematizadas, o movimento vem adquirindo grande visibilidade no cenário nacional, sendo divulgado por meio de sites, folderes, propagandas, artigos, manuais, etc.
Nesse contexto de difusão das práticas restaurativas, os manuais são destinados à formação principalmente de agentes sociais que pretendem atuar como coordenadores, mediadores ou facilitadores principalmente em interações entre sujeitos (tradicionalmente denominados vítimas e ofensores) envolvidos em danos, atos infracionais ou outra situação de violência.
            Preocupado com seu agir profissional, o coordenador precisa estar preparado para enfrentar o encontro entre vítima e ofensor em toda a sua complexidade. Sim, estamos falando de um ativismo complexo, mas acreditamos que esses agentes sociais têm potencialmente condições de contribuir com a construção de relações mais humanas. Ao aproximar a prática restaurativa de vários profissionais, como de professores, assistentes sociais, advogados, líderes comunitários e religiosos, grande parte dos manuais sobre justiça restaurativa fazem parte das atividades de capacitação/formação de sujeitos para que atuem na área de justiça restaurativa. Assim, os manuais tendem a orientar, em grande medida, as ações desses sujeitos que, nesta fase de introdução das práticas restaurativas no país, são um dos principais responsáveis pela direção e encaminhamento das atividades dessa abordagem de justiça. No cerne desse planejamento para formação em justiça restaurativa, constam técnicas de comunicação que visam a orientar agentes sociais a coordenarem, facilitarem ou mediarem a interação entre vítima(s), ofensor(es) e suas respectivas comunidades de apoio, como amigos, parentes e líderes religiosos.
Neste trabalho, interessa-nos justamente elementos dessas técnicas de comunicação referentes às etapas do Círculo Restaurativo, considerado o principal momento do Procedimento Restaurativo porque há o encontro entre ofensor, vítima e suas respectivas comunidades para coletivamente construírem respostas sobre o ato de violência, expressarem seus sentidos e elaborem um plano de ação que restaure a relação, entre outras ações.
            Tendo em vista as observações aqui tecidas, estamos observando na pesquisa que desenvolvemos que os muitos manuais de justiça restaurativa, como é o caso de Iniciação em Justiça Restaurativa: Formação de lideranças para a transformação de conflitos (2008) e Justiça e educação em Heliópolis e Guarulhos: parceria para a cidadania (2007), a introdução da escuta como um tempo de ouvir o outro, com seus sentimentos, de uma forma respeitosa, dimensão da palavra até então praticamente inexiste em práticas de justiça tradicional, sobretudo, quando esta escuta se refere à palavra da vítima. Encontramos o tempo disponível para o outro. Ainda assim, é possível afirmarmos a necessidade de um aprofundamento nas questões de escuta nos manuais para que essa posição seja uma busca essencial pela outra palavra, de que tratamos anteriormente. Com isso, evitaremos a escuta quando ela passa ser o querer ouvir, a confirmação, reprodução da fala do outro, por exemplo. De acordo com Ponzio (2010, p. 55), o querer ouvir, diferente da escuta, “obriga a dizer, impõe a monofonia, a pertinência às perguntas, a coerência, a não contradição”. 
Além disso, é preciso dar destaque, com o aval da escrita, que compreensões são prenhes de mal-entendidos e excluí-los é negar a alteridade. Há que se admitir o funcionamento da linguagem, sobretudo, em atos de compreensão do discurso de outrem, que precisa ser um ato ativo e responsivo para, assim, encontrar a outra palavra. A compreensão de discurso poderá, neste caso, ir além da enunciação primeira, criar algo novo, constituir novos sentidos. Para Ponzio (2010, p. 18), compreensão e mal-entendido estão ambos presentes em situações que não de recíproca exclusão; são condição para uma escuta impregnada de dar tempo ao outro, de “disposição incondicional ao acolhimento da sua palavra: Compreensão e mal-entendido vão de mãos dadas e geralmente a compreensão é feita de mal-entendidos. Eliminar mal-entendidos significa pôr em discussão uma relação, um consenso, uma adesão, uma relação de recíproca compreensão”.
Para pensar a escuta sob essa dimensão da outra palavra, é preciso enfrentar o instável, questionar nossa busca incessante pela segurança. Construiremos, quem sabe, no fluxo das instabilidades uma estabilidade provisória e a confessaremos ao outro como uma posição provisória, como sugere Geraldi (2002), falando do encontro entre palavras e contrapalavras. Esse é caminho da pesquisa em linguagem na contemporaneidade, começar a introduzir a noção de indeterminação em suas atividades, como sugere esse estudioso, em vários de seus escritos. Diante de um esgotamento no fazer científico, a que a Linguística não escapa, Geraldi (2010) lembra que nem sempre saberemos os caminhos a trilhar. Porém não estamos sozinhos: “nestes novos caminhares, certamente estamos reconstruindo parentescos, reencontrando novas parcerias” (GERALDI, 2010, p. 52).  No caso deste trabalho, onde ensaiamos uma leitura possível e ainda inicial sobre certos aspectos do uso da linguagem em materiais de justiça restaurativa, colocamos a Linguística para conversar com a Justiça, que atualmente também se renova por meio aqui da Justiça Restaurativa. 

Referências:
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CALVINO, Ítalo. A palavra escrita e não-escrita. In.: AMADO, Janaína; MORAES FERREIRA, Marieta de. (Orgs.). Usos e abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 
EDNIR, M. (ORG.). Justiça e educação em Heliópolis e Guarulhos: parceria para a cidadania. São Paulo: CECIP, 2007. Disponível em: <
GARAPON, Antoine. A justiça reconstrutiva. In: GARAPON, Antoine. et al. Punir em Democracia. Tradução Jorge Pinheiro. Instituto Piaget: Lisboa, 2001.
GERALDI, JOÃO WANDERLEY. Pesquisa em linguagem na contemporaneidade. In: Ancoragens – estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
__________________________. Leitura: uma oferta de contrapalavras. Educar, Curitiba, n. 20, Editora da UFPR. p. 77-85.
JUSTIÇA PARA O SÉCULO 21. BRANCHER, Leoberto Narciso. Iniciação em Justiça Restaurativa: Formação de lideranças para a transformação de conflitos. Porto Alegre: AJURIS, 2008.
PONZIO, Augusto. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.


Manifestações políticas responsivas: ações cotidianas
Bruna de Souza Silva[1]

A língua como fonte de comunicação humana pode se tornar uma importante ferramenta de expressão para a sociedade que a forma e mantém como conseqüência a aplicação de características culturais que envolvem aspectos políticos, sociais e históricos.
A canção por sua vez, elaborada como “palavra cantada” - união de música e poesia - transforma-se em resposta a ações de uma época, uma vez que relacionada a diversos fatores. Ao observar-se a composição de uma letra com intuito de refletir acerca da crítica ali retratada a seu tempo, notar-se-á características autorais que evidenciam os sentimentos de uma determinada geração, ou seja, o compositor tem a possibilidade de se transformar em um sujeito responsivo acolhedor de pensamentos que toma posse da voz de várias pessoas com determinadas opiniões a respeito de algo.
Após o momento da criação da letra, o cantor (que pode ser o próprio compositor ou não) analisa esta invenção e a modifica através de suas características, do seu meio de divulgação, de sua interpretação, etc, com o intuito de enfatizar ou provocar novos sentidos de modo que exerça a sua capacidade de produção pessoal por meio da interpretação, via entonação e performance de execução da canção.
Depois dessa “elaboração estética”, o enunciado é recebido pelo outro do discurso (seu público real), que, por sua vez, também produz múltiplos sentidos por meio da contemplação/recepção/audição da canção, conforme sua vivência e características particulares. Esse processo de interação eu-outro da canção cria a possibilidade de atingir, de fato, o intuito do autor-criador de gerar uma consciência reflexiva no outro, responsiva pelos seus atos. Isso torna ambos os envolvidos no processo, ou seja, eu e outro, responsáveis e éticos. Pensamos as concepções de responsabilidade, ética, sujeito e responsividade, tal qual Bakhtin/Voloshinov(1976, p.4):
“O que caracteriza a comunicação estética é o fato de que ela é totalmente absorvida na criação de uma obra de arte, e, nas suas contínuas recriações por meio da co-criação dos contempladores, e não requer nenhum outro tipo de objetivação. Mas, desnecessário dizer, esta forma única de comunicação não existe isoladamente; ela participa do fluxo unitário da vida social, ela reflete a base econômica comum, e ela se envolve em interação e troca com outras formas de comunicação”.

Essas ações relatadas estão por natureza no cotidiano dos seres humanos, que relacionam e designam seus gostos musicais a partir dos costumes, culturas, estilos etc. que estão presentes em sua vida e interagem em relações sociais ou no meio em que convivem. Um exemplo: na canção “Volte para o seu lar” (1991),composta por Arnaldo Antunes e cantada algumas vezes por Marisa Monte e outras pelo próprio compositor, observa-se uma forte crítica social aos padrões políticos colonizadores e catequizadores, como é possível perceber logo em seus primeiros versos: “Aqui nessa casa / Ninguém quer a sua boa educação / Nos dias que tem comida / Comemos comida com a mão”. No início dos anos 90, no Brasil e em outros lugares do mundo, discutia-se muito sobre a catequização de tribos/povos (principalmente indígenas e africanas) e sobre a relação do branco com esses povos e suas tradições, que seriam perdidas tanto quanto suas culturas e extinto o seu povo para se adequar aos padrões exigidos pelos brancos colonizadores, a fim de beneficiar líderes anti-éticos, que não consideravam as escolhas ou desejos íntimos de seus habitantes. Além disso, a letra faz menção a vários outros aspectos sociais, sempre tendo em mente o processo de aculturação e resistência à colonização. Dentre eles, a desigualdade social que possui uma ampla desqualificação na educação, saúde, segurança, etc. Essa percepção responsiva adotada pelo eu-criador da letra tende a impactar o “outro”, a fim de despertá-lo acerca da “realidade” da exploração de toda uma nação que deve assumir o controle de suas ações e manifestar-se ativamente com relação à política tanto no nível de seu país como mundial.
Deve-se enfatizar também as performances e entoações de ambos os cantores. Na interpretação (voz) de Marisa Monte, a canção é forte e agitada, embalada pelo uso de instrumentos percussivos e cenários tribais que remetem ao Brasil e à África, o que atrai a atenção do ouvinte para um ritmo mais performático (dançante e impulsivo). Em contraposição, na interpretação (voz) de Arnaldo Antunes, a canção possui um andamento melódico mais lento, sem tanta movimentação ou modulações, mais calma, como se o ritmo apenas fosse pretexto/acompanhamento para a declamação da letra da canção, entoada como um apelo declamado/falado (o que lembra muito o intuito do RAP). Essas duas maneiras de cantar causam estranhamento e atribuem sentidos diversos para a interpretação da canção, o que remete à importância do cantor/intérprete na produção dos sentidos desse gênero discursivo.
A canção mencionada denúncia as problematizações de um período, assim como no decorrer das épocas há diversas canções que surgem para expressar ou recordarmomentos vivenciados por uma sociedade e transformam-se em registros históricos, ou seja, sãolembradas e estudadas ao longo dos anos.
Obviamente os diversos tipos de manifestações como resposta política existentes não são somente as artísticas nem tampouco as de canções, pois englobam diversificadas áreas. As manifestações estudantis, por exemplo, são guiadas, geralmente, pela busca de direitos de um povo em que se impõem ações injustas nas quais somente priorizam atender as vantagens não éticas de pessoas que estão no poder e originam, em resposta, a revolta da população.
Essas atuações contra um governo injusto são de fundamental relevância para a coletividade, como afirma Bakhtin (2003): “a vida e a arte não devem só arcar com a responsabilidade mútua, mas também com a culpa mútua”. Logo, a consciência política deve ser aguçada por e realçada em todos, pois ela torna o individuo atento aos seus direitos e deveres, o que forma um "observador da política" que pratica a reflexão sobre suasatitudes, como em exemplo; eleger representantes após uma pesquisa minuciosa sobre suas propostas futuras para acompanhar e verificar suas ações duranteo período que permanecer no cargo.
Um fato ocorrido atualmente mencionado por vários meios da mídia é o movimento estudantil para a reforma educacional no Chile. Os estudantes protestam contra o sistema das faculdades públicas e particulares chilenas serem, obrigatoriamente, pagas, o que retira a possibilidade de ensino para todos e desqualifica grande parte da população; em resultado, um grande número de cidadãos em todos os países se revoltou contra a repressão do governo e praticam atitudes responsivas para que a revolta contra o governo se intensifique e faça com que o atual presidente, SebastiánPiñera, perca sua popularidade e assuma ações justas.
Ao tomar posse de todos os aspectos aqui abordados, pode-se refletir sobre o papel fundamental das formas de expressão na política que se manifestam (assim como nos exemplos tomados da canção e do movimento estudantil) como ação fundamental existente em todos os momentos da vida. Esse ponto de vista concebe os seres humanos como criadores de suas próprias escolhas, que devem terações diárias reflexivas e utilizar instrumentos como a canção ou outras manifestações populares para a revelação de seus sentimentos internos. Desejos de uma sociedade que não deve ter líderes abusivos e sim representantes que compreendam e executem o poder da ação ética e responsável junto com, tanto quanto, o povo.

Bibliografia:
ANTUNES, A. "Volte para o seu lar". Mais. Marisa Monte. São Paulo. EMI. 1991
BAKHTIN. M. M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. (Edição traduzida a partir do russo). São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail (MEDVEDEV, Pavel. N.). El método formal enlos estúdios literários. Alianza, 1994. 
BAKHTIN, Mikhail. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
VOLOCHINOV. Discurso na vida e discurso na arte. Versão acadêmica traduzida por Carlos Alberto Faraco.Mimeo.



Discursos sobre o agronegócio: questões de hegemonia e lutas ideológicas[1]
Camila Caracelli Scherma
caracellischerma@bol.com.br
Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR

“’O estilo é o homem’, dizem; mas poderíamos dizer: o estilo é pelo menos duas pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu grupo social na forma de seu representante autorizado, o ouvinte – o participante constante na fala interior e exterior da pessoa” (Bakhtin/Voloshinov, 1976).

  1. A questão que moveu a pesquisa
                  A força constitutiva dos discursos na preparação, justificação, manutenção e fortalecimento de ações na base material da sociedade – infraestrutura – moveu o trabalho de pesquisa do curso de Mestrado, intitulado “Discursos, hegemonia e agronegócio: tensão e luta de classes no contemporâneo”. Mesmo pautado nas atividades econômicas ligadas à produção agrícola e pecuária em larga escala – o chamado agronegócio – o objeto deste trabalho é, antes de tudo, a linguagem, os discursos, as inter-relações que se travam por enunciados concretos. O ponto de partida é, desse modo, o texto, uma vez que “onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento” (Bakhtin, 2003, p. 307).
            No estudo desses textos, desses discursos coletados nas mais diversas esferas de atividade, interessou-nos a luta, o embate que se trava nas palavras; uma luta discursiva, que diz respeito aos interesses de classe.     Trabalhamos com a hipótese de que os investimentos direcionados ao agronegócio (e toda a organização desse campo de atividade) são sustentados e justificados por discursos ideologicamente construídos para a manutenção e fortalecimento da atual ordem das coisas, numa tentativa das classes dominantes de tornar os discursos monovalentes (ideologia oficial). Tais discursos exercem um papel de criar e manter uma aparência de que o Brasil está se inserindo no contexto da economia mundial, com importante papel.
            No entanto, a dialética interna do signo “agronegócio” revela as contradições, pois há também a construção de discursos não-hegemônicos que contestam a atual ordem das coisas, fazendo emergir as contradições, desestabilizando essa hegemonia, subvertendo a atual ordem e revelando o caráter deformador dos signos e, por meio deles, as contradições de classe no atual período, afirmando que a produção de commodities agrícolas apenas reforça a já histórica função do país na divisão internacional do trabalho, além de atender a uma lógica financeira e de mercado.
            Com isso, nos propusemos a responder à questão: como discursos coletados em diversas esferas de atividade humana mostram o funcionamento das ideologias e seu constante embate sígnico a partir de ações na base material da sociedade e do território?

  1. Percurso traçado para o desenvolvimento da pesquisa
            O caminho traçado por nós neste trabalho perpassou discursos produzidos nas mais diversas esferas de atividade humana, em busca de compreender como as ideologias que compõem esses discursos e como as diversas manifestações sobre as ações em torno do agronegócio revelam os interesses das diferentes classes sociais envolvidas nesses embates, que são embates discursivos.
            Essa luta nos signos também foi analisada por nós nos discursos encontrados em textos jornalísticos, sobretudo aqueles publicados no jornal Folha de S. Paulo e Brasil de Fato, em função de se constituírem a partir de destinatários distintos, com interesses distintos. O período de deflagração da mais recente crise financeira mundial foi o período em que esses dados foram coletados, posto que a luta discursiva embasada nos interesses de classe se intensifica em épocas de instabilidade. Não só a crise financeira nos motivou nessa coleta, mas também uma crise social, uma crise territorial. Nas palavras de Bakhtin e Voloshinov, a “dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária” (Bakhtin/Voloshinov, 2009, p.48).
            O estudo desses dados foi embasado na obra de Bakhtin e do Círculo, de maneira que, como afirmam no livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, além de analisarmos o nosso objeto do ponto de vista do conteúdo, pudéssemos fazê-lo também “[...] do ponto de vista dos tipos e formas de discurso através dos quais estes temas tomam forma, são comentados, se realizam, são experimentados, são pensados, etc.” (Bakhtin, 2006, p. 44). Observamos também as seguintes regras metodológicas propostas por Bakhtin/Voloshinov:

1. Não separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no campo da “consciência” ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível).
2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social (entendendo-se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não tem existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico).
3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-estrutura) (Bakhtin, 2009, p. 45).
           
  1. Pontos principais de discussão
            3.1 Relação infra e superestruturas

            As relações, inter-ações, no meio onde elas se dão, na infraestrutura, na base material concreta, constituem embates ideológicos ao mesmo tempo em que são por eles constituídas. Mudanças sociais são, portanto, refletidas e refratadas pelos signos ideológicos constituintes dos discursos. Nesse processo todo, novas relações constituem novos discursos e esses também as transformam. Desse modo, foi pelo estudo da palavra, dos signos, dos discursos que estudamos as relações que se dão entre infraestrutura e superestrutura.                    Na busca pela explicitação das relações entre a organização do território brasileiro em função das atividades agropecuárias em larga escala (nomeadas muitas vezes de agronegócio) e as transformações ideológicas decorrentes desses processos, desembocamos num processo dialético de evolução social, “que procede da infra-estrutura e vai tomar forma nas superestruturas” (Bakhtin, 2009, p. 41).
           
            3.2 Ideologias

            É importante ressaltar desde já que as concepções de ideologia com as quais trabalhamos ao longo da pesquisa são aquelas propostas por Bakhtin e o Círculo[1]. Não compreendemos, portanto, ideologia como falsa consciência ou como uma visão relativista dos fatos, em que tudo é ideológico. Para situar nossa compreensão de ideologia, podemos citar Ponzio (2008), quando esclarece que,

para Bakhtin, o termo “ideologia” se emprega no sentido de ideologia da classe dominante, interessada em manter a divisão em classes sociais e em ocultar as reais contradições que tentam transformar as relações sociais de produção (ideologia como falsa consciência, como mistificação, como pensamento distorcido etc.), mas também é usado no sentido amplo que o termo assume, sobretudo a partir de Lênin, e que permite aplicá-lo tanto à “ideologia burguesa” como à “ideologia proletária” e à “ideologia científica” (esta última resultaria numa contradição de termos se partirmos da definição de ideologia em geral como falsa consciência) (Ponzio, 2008, p.115).

            Assim, o conceito de ideologia com o qual procedemos às análises é um conceito que assume esse termo não só como uma visão de mundo, como opinião valorativa sobre as coisas, mas como tomada de posição diante delas, calcada nos interesses de classe, constituídos por ela e constitutivos dela, simultaneamente, e que “condiciona atitudes e comportamentos tanto dos sujeitos do grupo em questão como dos outros grupos sociais, quando se converte em ideologia dominante” (Ponzio, 2008, p.116).
            Tomar posição diante dos acontecimentos é construir discursos a partir das relações sociais que se estabelecem diante dos fatos. Os interesses de classes orientam a constituição ideológica desses discursos. Um mesmo fato que se dá na base material da sociedade é visto de maneiras distintas de acordo com quem os vê.
            A grande questão está em torno da hegemonia desses discursos que também é refletida e refratada nas ações da base material, da base socioeconômica. Aqueles discursos que são construídos com a finalidade de manter e fortalecer a atual organização das coisas, que tentam estabilizar as ações e as falas em torno delas, que tentam tornar as posições a respeito dessas ações monológicas, têm sido os discursos hegemônicos, posto que têm tido mais força, que têm determinado os detentores dos meios de produção, os detentores de terras, do comando da política e da economia. Já aqueles discursos que tentam subverter a atual ordem das coisas, que questionam, que põem em debate, que propõem mudanças, movimentos, constituem os discursos da não-hegemonia, posto que os que os proferem são aqueles que não detêm o poder, que não detêm o comando político e econômico, são os discursos com vozes destoantes daquelas que monologizam, são as vozes que instauram as instabilidade em oposição à estabilidade discursiva corrente na atualidade da esfera de atividade do campo, da agricultura e da pecuária brasileiras.

  1. Considerações Finais

            A luta discursiva por nós estudada nesse trabalho constitui embates ideológicos que refletem uma realidade de conflitos e tensões, dentro da qual convivem diferentes sujeitos, organizados em diferentes classes sociais que, com base nos seus interesses, lançam-se na arena discursiva, lutando, ora pela manutenção da atual ordem das coisas, ora pela subversão dessa mesma ordem.
            A tensão constitutiva dos discursos e constituída por eles está no fato de que há a construção de uma imagem do Brasil como grande promessa internacional de desenvolvimento; no entanto, há discursos outros que afirmam que os esforços nessa direção não passam de trabalho para manter uma posição já historicamente consolidada de um Brasil que é fornecedor de matérias-primas a baixos preços e que usa de seus vastos, mas finitos, recursos para isso.
            O estudo dos signos, dos discursos, um estudo feito, portanto, pelas lentes da linguagem, nos permitiu construir compreensões acerca da base material da sociedade – mais especificamente na esfera do agronegócio. As palavras refletem e refratam as ações, os fatos, os acontecimentos, de acordo com os projetos de dizer de cada sujeito ou de cada classe social, não porque tais ações ou fatos são o que são, mas porque os sujeitos que a elas se referem discursivamente são o que são. Desse modo, o alargamento dos estudos linguísticos e discursivos, buscando neles os embates entre estabilidade e instabilidade nos permite pegar nos discursos, além das lutas ideológicas, a vida.

Referências Bibliográficas
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 4ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN/VOLOSHINOV. Discurso na vida e discurso na arte. Tradução de Cristóvão Tezza. Nova York: Academic Press, 1976.
______. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 13 ed. – São Paulo: Hucitec, 2009. [1929]
MIOTELLO, V. Os interlocutores de Bakhtin. Linguasagem, v. 2, p. 1-5, 2008. Disponível em: <http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao02/02c_vm.php>. Acesso em: 17/01/2011.
______ . Círculos de Bakhtin I. Linguasagem, v. 5, p. 01-06, 2009a. Disponível em: <http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao05/col_cb.php>. Acesso em: 17/01/2011.
______ . Círculos de Bakhtin II. Linguasagem, v. 7, p. 01-05, 2009b. Disponível em: <http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao07/coluna_conversando.php>. Acesso em: 17/01/2011.
PONZIO, Augusto. A Revolução Bakhtiniana: o pensamento e a ideologia contemporânea – São Paulo: Contexto, 2008.


O sentido político e cultural da brincadeira infantil: um diálogo com Bakhtin, Leontiev e Elkonin
Dania Monteiro Vieira Costa[1]
PPGE - Universidade Federal do Espírito Santo

RESUMO
Discute o modo como Leontiev, Elkonin e Bakhtin compreendem a brincadeira. Inicia apresentando a maneira como Bakhtin (1987) analisa o jogo no contexto da obra de François Rabelais. Em seguida, traz para o diálogo a concepção de brincadeira ou jogo no desenvolvimento infantil de Elkonin e Leontiev, pesquisadores que integram a psicologia histórico-cultural. Finaliza tomando esses autores como referência para realizar a análise de uma brincadeira infantil, discutindo o seu  caráter político e cultural.

Introdução
     O presente artigo visa discutir o modo como Leontiev, Elkonin e Bakhtin compreendem a brincadeira. Para isso, iniciamos apresentando a maneira como Bakhtin (1987) analisa o jogo no contexto da obra de François Rabelais. Em seguida, trazemos para o diálogo a concepção de brincadeira ou jogo no desenvolvimento infantil de Elkonin e Leontiev, pesquisadores que integram a psicologia histórico-cultural. Finalizamos tomando esses autores como referência para  realizar a análise de uma brincadeira infantil, discutindo o seu caráter político e  cultural.

Um possível diálogo sobre a brincadeira infantil entre Bakhtin e os representantes da psicologia histórico-cultural 
      Bakhtin (1987) não se deteve a discutir de maneira específica a brincadeira. No entanto,  ao analisar a obra de François Rabelais  analisou a cultura cômica popular da idade média que, segundo ele, é infinita e extremamente heterogênea nas suas manifestações. Na perspectiva de Bakhtin, François Rabelais traduziu na literatura, com muita riqueza, a cultura da idade média. Nas palavras do autor, “[...] a sua obra, se convenientemente decifrada, permite iluminar a cultura cômica popular de vários milênios, da qual Rabelais foi o eminente porta-voz na literatura” (BAKHTIN, 1987, p. 3).  No capítulo denominado “As formas e imagens da festa popular na obra de Rabelais”, Bakhtin (1987) analisa o modo como Rabelais  se debruça especialmente sobre os jogos e divertimentos dos estudantes e bacharéis no contexto da cultura cômica popular da idade média.  Para ele, “os jogos de toda espécie (desde os jogos de baralho até os esportivos), as predições, adivinhações e augúrios de todo tipo ocupavam um lugar preponderante na parte popular e pública da festa” (BAKHTIN, 1987, p. 200). Também para o autor, “o interesse que Rabelais manifesta pelos jogos não é evidentemente fortuito; partilha-a com toda a sua época. Com efeito, os jogos estavam ligados por um sólido elo, não apenas exterior, mas ainda interior à parte popular e pública da festa” (BAKHTIN, 1987, p. 201).  Desse modo, o jogo expressa uma concepção do processo histórico, enfatizando as relações do homem da idade média com tempo, com o futuro, com o destino e com o poder do Estado. Tudo isso se presentificava de maneira simbólica nos jogos. Assim,
via-se nas imagens dos jogos uma espécie de fórmula concentrada e universalista da vida e do processo histórico; felicidade – infelicidade, ascensão – queda, aquisição – perda, coroamento – destronamento. Uma vida em miniatura desenvolvia-se nos jogos (traduzida na linguagem dos símbolos convencionais), de forma muito direta. Ao mesmo tempo, o jogo fazia o homem sair dos trilhos da vida comum, liberava-os de suas leis e regras, substituía as convenções correntes outras convenções mais densas, alegres e ligeiras. Isso vale não apenas para as cartas, dados e xadrez, mas igualmente para todos os outros jogos, inclusive os esportivos (boliche, pelota) e infantis   (BAKHTIN, 1987, p.204).

      Nessa direção, Rabelais, conforme discute Bakhtin (1987), apresenta o jogo ou a brincadeira como um instrumento simbólico que possibilitava ao homem da idade média  libertar-se, mesmo que, momentaneamente, das leis e regras impostas pelo Estado e pela Igreja.  Mas que, ao mesmo tempo, era uma possibilidade de libertação “efetiva” que estava sendo gestada.
      Importante destacar que entendemos que o modo como Bakhtin (1987) apresenta o jogo na obra de François Rabelais se aproxima em muitos aspectos ao modo como os representantes da psicologia histórico-cultural entre eles Elkonin (1998) [2]e Leontiev (1988) concebem a brincadeira e ou jogo  no desenvolvimento infantil.  Esses pesquisadores concebem a brincadeira infantil de um modo muito peculiar, na medida em que compreendem que a brincadeira não é instintiva. Ao contrário, defendem que ela  é eminentemente histórica e  cultural. 
     Assim,  os representantes da psicologia histórico-cultural e Bakhtin compreendem que   as brincadeiras  são de natureza cultural, ou seja, as brincadeiras ou os jogos têm relação direta com a vida. O homem da idade média retomava a vida nos jogos da festa popular. Em outras palavras, via-se nas imagens dos jogos uma espécie de fórmula concentrada e universalista da vida e do processo histórico. Também conforme estudos desenvolvidos por Elkonin (1998, p. 48) e Leontiev (1988) “a natureza dos jogos infantis só pode ser compreendida  pela correlação existente entre eles e a vida da criança em sociedade”. 

O sentido político e cultural da brincadeira  infantil

      Buscando, portanto, discutir o sentido político e cultural da brincadeira infantil trazemos para a discussão o modo como Elkonin, Leontiev e Bakhtin concebem a brincadeira  e, para melhor entendê-la, iniciamos com a apresentação de um evento[3], cujo tema é a brincadeira. Ele ocorreu em turma de crianças de 4 anos a estagiária Jaq  ter realizado a leitura da história O sapo lambão. A professora e a estagiária levaram a turma para o pátio, mas as crianças Car, Kez e Emi [4]ficaram na sala de aula e Car pega o livro e inicia a leitura da história:
T1 Car: ((sentada na cadeira como a professora e segurando o livro como ela, começa a contar a história do sapo lambão)) na historinha do sapo lambão... o sapo lambão colocou a língua na areia... ((começa a cantar a música que a professora ensinou)) o sapo não lava o pé... não lava porque não quer... ele mora lá na  lagoa... não lava o pé porque não quer... mas que chulé::: ((canta novamente a música, mas troca o nome do sapo pelo nome da menina para quem ela estava contando a história)) a  Kez  não lava o pé... não lava porque não quer... ele mora lá na lagoa... não lava o pé porque não quer... mas que chulé::: (   ) oh o sapo tá covando o denTE... ((mostra ilustração do sapo escovando os dentes)) quem gosta de covar o dente?
T2 Kez: eu:::
T3 Car: Kez... é você mesmo covando o dente... ((mostra ilustração do sapo)) quando aqui fica um monte de bichinho aqui oh... dá negócio... um monte de bichinho... ((mostra os dentes)) oh o sapo na lagoa... o sapo não lava o pé porque não quer... ((fala esse trecho da música como se estivesse lendo no livro)) olha gente olha aqui tá vendo a historinha do sapo... olha...os dois irmãos... ((olha a ilustração de dois sapos se abraçando)) pra QUE ISSO? pra QUE ISSO? o sapo de olho fechado... ((para a leitura para tossir)) nossa::: os dois tá com batom... não os dois não tá com batom...só um... ele mora na lagoa... olha que lindo... chuá::: quem come isso? ((mostra a ilustração do sapo comendo mosquito))
       Conforme é possível observar, a menina Car realiza o que os representantes da psicologia histórico-cultural chamam de jogo protagonizado. No jogo protagonizado, as crianças ocupam lugares sociais, cuja “[...] essência interna consiste em reconstituir precisamente as relações entre as pessoas” (ELKONIN, 1998, p. 284). Para esse autor, a brincadeira está intimamente relacionada com as necessidades que as crianças sentem, desde muito cedo, de se comunicar com os adultos e de compreender esse mundo. Necessidades que se convertem em tendência para levar uma vida comum com eles, por isso as relações humanas são o cerne da brincadeira. Assim, quando a criança assume o lugar social de professora, no jogo, ela leva em consideração as convenções, isto é, as regras sociais referentes ao lugar que ocupa. Por isso, a menina Car ao ocupar o lugar de professora, se senta na cadeira como a professora, segura o livro do mesmo modo que a professora e também como ela convoca as crianças para, naquele momento, vivenciarem  de maneira simbólica o mundo dos adultos.
     A vivência pela criança do mundo dos adultos por meio do jogo protagonizado também está intimamente relacionada à linguagem. Ou seja, “ocupar” um lugar na sociedade por meio do jogo protagonizado é, além de assumir a linguagem gestual  da função representada (sentar na cadeira e segurar o livro), também utilizar a linguagem verbal por meio da utilização dos enunciados que são comumente utilizados pelas pessoas que desenvolvem a função por ela representada. Por isso, a menina Car se dirige a Kez, sua interlocutora, para fazer perguntas que sua professora fazia costumeiramente: “quem gosta de covar o dente? (T1), pra QUE ISSO? (T3), quem como isso? (T3), que como aquele negócio que eu mostrei?...hein...Kez? (T5), olha que ele mora...vamos ver que ele mora? (T8)”. Desse modo, no desenvolvimento do jogo protagonizado, a criança utiliza gêneros discursivos utilizados na atividade humana representada no jogo, transitando, assim, em um espaço discursivo que não é utilizado por ela no seu cotidiano. Por isso, é possível inferir que o jogo protagonizado contribui para o desenvolvimento da linguagem.
      Além desses aspectos é fundamental refletir sobre as questões enunciadas por Bakhtin (1988) que apresentamos no início deste texto e que reforçam a compreensão do sentido político da brincadeira. Conforme o autor, uma vida em miniatura desenvolvia-se no jogo. A menina Car constrói uma vida em “miniatura”, uma vida que na realidade pela sua condição de criança, não é possível vivenciar. Assim, por meio da brincadeira, ela pode estar no lugar da professora. Podendo, assim sair dos trilhos de sua vida comum, se liberar das leis e regras da escola e quebrar a hierarquia social nela presente. Em outras palavras, a brincadeira infantil tem uma dimensão política, pois ao assumir o lugar da professora no jogo protagonizado, a criança transgride a ordem vigente  e se coloca em condição de igualdade em relação àquela que mais concentra o poder na sala de aula. 
      Bakhtin (1987) na sua análise também aponta que o sujeito da festa popular da idade média quando realizava os jogos substituía as convenções correntes por outras convenções mais densas, alegres e ligeiras. Vimos que menina Car no meio da história insere uma música muito conhecida: “O sapo não lava o pé” e num determinado troca o nome do sapo pelo nome da menina Kez para quem ela estava contando a história.  Esse fato torna o ato de contar história, atividade que na maioria das vezes é realizada de maneira formal,  lúdica e alegre.
     Outra função do jogo na festa popular da idade média, conforme Bakhtin (1987, p. 208), “[...] é de destronar o sombrio tempo escatológico das concepções medievais do mundo, de renová-lo no plano material e corporal, [...] de transformá-lo num tempo bom e alegre”.  Nessa direção, entendemos que o ato de pegar um livro e representar  a leitura desse  livro, mesmo sem ter o domínio da escrita convencional, é um ato de destronar o sombrio, de lidar com o medo de não aprender a ler e a escrever. É a busca da renovação, da possibilidade de dominar a escrita, um artefato cultural tão importante para a sociedade em que ela está inserida.

Algumas considerações
    Muitas vezes, a escola não tem compreendido o real significado da brincadeira para a criança. Por isso, estabelecer um diálogo entre Bakhtin, Leontiev e Elkonin sobre a brincadeira infantil e, em seguida, tomar esses autores como referência para analisar uma brincadeira infantil é um desafio necessário. Conforme vimos, a brincadeira é coisa “séria”. Ela é fundamental para o desenvolvimento da criança. Há muitos elementos no jogo protagonizado. No entanto, não era objetivo deste texto discutir todos esses elementos. Apesar disso,  apresentamos algumas questões que são fundamentais para a compreensão da importância da brincadeira infantil. Assim, conforme vimos, ao realizar o jogo protagonizado ou a brincadeira, a criança vai além da sua realidade quando vivencia situações que não poderia realizar no seu cotidiano. Assim, ela produz enunciados de diferentes atividades humanas, ampliando, assim, as suas capacidades de produção de linguagem. Além disso, lida com seus medos em relação ao poder  instituído ao promoverem o destronamento quando assumem o lugar do adulto.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
ELKONIN, Daniil B. Psicologia do jogo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LEONTIEV, A.N. Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar. In: VIGOTSKI, L.S.; LURIA, A.R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone Editora, 1988. p. 119-142.


DEBATE POLÍTICO RESPONSIVO ATIVO: a plataforma de Governo do Povo
Danyllo Ferreira Leite Basso[5]
Luciane de Paula[6]

Todo poder emana do
 povo, que exerce por meio de representantes
 eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição.
(Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05.10.1988, Art. 1°, parágrafo único)

Democracia, segundo o Dicionário (2000), do grego, demos, povo; e cratos, poder; isto é, o poder nas mãos do povo ou os cidadãos com poder de decisão acerca de quem os representará. Esse poder aparece de maneira mais legítima pela instauração do direito (e não obrigação) ao voto,um direito que deve se fundamentar na responsabilidadade, uma vez que por meio desse simples ato, uma cadeia estrutural sistêmica se re-produz, nas mais diferentes esferas, em todo (o) país. Desse ponto de vista, importante refletir historicamente acerca desse ato político de linguagem (o ato de votar) e sua relação com a responsabilidade e responsividade dos sujeitos envolvidos no processo dito democrático, a fim de pensar a constituição e re-produção de valores (identitários, inclusive) individuais e coletivos instituídos (a serem modificados ou não) em nossa sociedade. Esse é o nosso intuito aqui: tratar da responsabilidade e da responsividade de todos, ainda de que maneira hierárquica, no processo de instauração de uma imagem e de desenvolvimento político-econômico-sócio-cultural do Brasil.
De acordo com Moura (2010), em 1822, Dom Pedro I convoca eleições para uma Assembléia Geral Constituinte e Legislativa. O sistema de voto era censitário, o que preservava o poder da aristocracia, dos senhores de terra e dos comerciantes. Podiam votar e serem votados apenas os homens livres com mais de 25 anos e renda própria. Estavam excluídos desse sistema todos os assalariados, soldados, , escravos e índios. Pra ser deputado, além de rico, também era necessário ser católico, pois o poder da Igreja Católica se misturava com o do Estado. Com a Proclamação da República, em 1889, o Brasil adota o Presidencialismo, separa o Estado da Igreja e extingue o voto censitário. Durante a República Velha, de 1889 a 1930, muitos dos eleitores foram manipulados e comprados, a miséria e a consequente necessidade era tamanha que os senhores da terra nada pagavam aos trabalhadores além de calçados e enxadas. Executavam o “voto do cabestro” e, com isso, revelavam a total despreocupação com o “outro”, ao persuadir e manipular suas respostas diante do sistema.
Em 1930, há a ruptura com esse sistema, com a chamada Revolução de 30, que leva ao poder Getúlio Vargas. E, em 1932, são criados, diante das pressões da Revolução Consitucionalista, a justiça eleitoral e o código eleitoral, que definem o voto como secreto e dão direito de voto às mulheres. A nova Constituição, promulgada por Getúlio em 1934, baixa a idade legal para votar para 18 anos[7]. Em 1937,pelo governo Vargas, é instaurada a Ditadura do “Estado Novo”, que extingui a justiça eleitoral, os partidos políticos e as eleições livres, num retrocesso que perdurou até 1945.
Cinco anos mais tarde, em 1950, o novo código eleitoral institui que as cédulas das eleições sejam únicas, o que torna possível o sigilo do voto. Em 1955, os eleitores passam a votar em seções eleitorais fixas, o que contribui para eliminar a possível fabricação e uso de títulos eleitorais falsos. Tudo para assegurar que o sujeito social, nós, possam exercer sua cidadania com dignidade e responsabilidade. O voto passa a ser concebido, aos poucos, como um ato político responsivo da população brasileira, ainda que aos “trancos e barrancos”, como diz o ditado popular, dado o processo histórico conturbado de nosso quadro político, conforme estamos mencionando rapidamente aqui. Todavia, responder às ações praticadas no poder por meio do voto só foi um direito conquistado pela população por 10 anos, uma vez que em 31 de Março de 1964, o Brasil cai num buraco que dura 21 negros anos: a ditadura militar.
Durante esse longo período ditatorial há asuspensão dos direitos civis e políticos, principalmente os eleitorais. Este é um momento de cerceamento e perseguições, constituído, exatamente por esses motivos, por inúmeras lutas e revoltas políticas, dos mais variados setores da sociedade (trabalhadores, mulheres, estudantes, entre outros), que reivindicavam o poder de responder, sim, o “poder” de respoder via livre expressão do pensamento, aos abusos de toda ordem cometidos no respectivo período “nacional”. E é desse momento histórico que herdamos a nossa possibilidade de resposta por meio do voto direto e secreto na contemporaneidade. Resposta nem sempre bem exercida, nem sempre valorizada como deveria ser, pois vista como ato obrigatório de legitimação da roubalheira e da pouca vergonha de nossos representantes políticos. Um absurdo! Afinal, nossa resposta é o nosso poder - e nem estamos mencionando aqui a falta de comprometimento com os assuntos públicos que deveriam fazer parte de nosso cotidiano, uma vez que se referem a todos; e muito menos à falta de atos políticos que reina nesse momento histórico, o que o caracteriza pela “indignação indigna”, da qual trata Skank na canção “In(dig)nação” (1992): “A nossa indignação / É uma mosca sem asas / Não ultrapassa as janelas / De nossas casas”.
Referimo-nos apenas ao ato responsável e responsivo do voto como ato político, pois, por meio do voto decidimos quem nos representará no Governo, o que significa que, indiretamente, esse simples ato  dita as regras do país, pois constrói ou desconstrói valores ao decidir a plataforma de Governo do candidato eleito, suas indicações aos Ministérios, sua ação quanto aos mais variados setores que regem a sociedade (saúde, educação, economia, direito, minas e energia, etc). Em outras palavras, não cabe apenas ao sujeito eleito o desenvolvimento ou o retrocesso do país, mas também a nós, desde o momento da eleição até o acompanhamento do cumprimento do plano de Governo e das ações realizadas durante o mandato presidencial do sujeito eleito. Entretanto, perguntamo-nos: efetuamos esses atos de maneira responsável e responsiva? Refletimos acerca de nosso ato de votar em sociedade de maneira séria, considerando todos esses elementos aqui expostos? Parece-nos que parte de nós institui o ato de votar como um dia de feriado em que há a obrigação de votar em alguém que nada irá mudar porque “todos são iguais”. Que igualdade é essa que impera hegemonicamente? A da corrupção, a da roubalheira e a dos escândalos que já não escandalizam mais, dada a naturalização realizada pela mídia que noticia tais eventos como banais e nós os incorporamos como tal. Mesmo quando eles sequer correspondem ao cotidiano vivido.
Qual o sentido de tantas CPIs se nada ocorre com os “culpados”? Cadê a nossa revolta ou manifestação coletiva diante de tantos milhões roubados e não ressarcidos para os cofres públicos (nossos bolsos!)? E quando ouvimos que não há inflação em nosso país, mas ao irmos ao supermercado, ao banco, aos postos de combustíveis ou pagarmos nossas contas, percebermos que os preços sobem a galope, o que fazemos? Comentamos com o vizinho, que concorda e, antes de sairmos, ambos, terminamos dizendo que “é assim mesmo que as coisas funcionam”. Essa é nossa responsabilidade e nossa responsividade diante das questões sociais que regem nossas vidas? Onde foi parar o espírito coletivo de justiça? Parece-nos que impera a conformidade encarada com pacificidade. Agora, uma coisa é sermos um povo pacífico, como nossos índios nos ensinaram; outra, bem diferente, é sermos passivos, o que não foi a lição deixada por eles, uma vez que, pacificamente, resistiram à colonização dos brancos europeus. Resistiram até a morte e a extinção de tribos inteiras. Resistiram a ponto dos colonizadores trazerem mão-de-obra da África para cá. E a nossa resistência? Bosi (2000) diria bque nada é mais poético que a resistência e a revolução! 
Voltemos ao processo histórico mencionado, interrompido por nossas reflexões: com o fim da Ditadura Militar, no governo de José Sarney, em 1985, restaura-se as eleições diretas para presidente e vice-presidente. Outras mudanças também ocorreram nesse processo, de lá para cá: os analfabetos ganham o direito ao voto; voto facultativo aos 16 anos, redução do mandato presidencial de 5 anos para 4 anos e o horário de propaganda eleitoral gratuito na TV e no rádio.Esse parêntese histórico serve para refletirmos sobre o árduo processo de conquista de direito ao voto como algo sofrido e que, hoje, muitas vezes, é desvalorizado pela falta de comprometimento político de nossa sociedade, pela apatia que reina e colabora para a manutenção da alienação sistêmica de que cada coisa e sujeito fique “em seu lugar”. A questão é: que lugar é esse? Ou, como cantaria a Legião Urbana, “Que país é esse?” (1989).
O sistema político vigente hoje em nosso país é o chamado democrático[8], o que significa que somos responsáveis pela eleição daqueles que nos representam legítima e institucionalmente, os políticos; bem como somos co-responsáveis, pelas respostas [de conivência ou não, de resistência ou não, de “indignação indigna / indigna inação” (como canta Skank na canção anteriormente mencionada) ou não, como a que elege Enéias, Tiriricas e “Fichas Sujas” como nossos representantes, entre outras] que damos, sempre de maneira ativa (afinal, mesmo a aparente passividade e até a aparente pasmaceira silenciosa é uma forma de ação), como sujeitos sociais que somos, às suas atitudes no exbercício do poder.
Do ponto de vista semiótico, nossos governantes nos representam tal como a linguagem representa o real. Isso faz com que, de certa forma, nosso próprio “eu” esteja no Governo. As atitudes dos magnatas “refletem e refratam” uma mentalidade non sense que impera em nossa sociedade, de maneira estereotipada e cristalizada. A questão é: por que nós os escolhemos se dizemos, cotidianamente, que eles “não” nos representam? Por que aceitamos e reproduzimos suas atitudes de corrupção, “jeitinho” etc? Se não acreditamos mais em ninguém, por que elegemos sempre “os mesmos”?
A resposta dada por nós nas urnas das últimas eleições demonstram nossa falta de ideal, bem como nossa “inação” política, pois no momento em que os candidatos re-velaram suas metas e projetos, com objetivos de aparente melhoria da qualidade de vida (de quem? Essa é a questão!), muitas piadas, ironias e demais brincadeiras proliferaram pela sociedade. No entanto, em que a atitude de pilhéria contribuiu para mudança de valores? Em nada, uma vez que no ato do voto, elegemos muitos dos sujeitos caçados por corrupção ou perseguidos por desvio de verba pública como nossos representantes Os mesmos políticos continuam no Governo porque nós lhes demos esse poder de representação, ao responder às suas atitudes de maneira positiva ao voltar a votar neles – caso, por exemplo, de Maluf, entre outros tantos.
O nosso descompromisso tem sido tamanho que ouvimos e pensamos, muitas vezes, sobre a importância de debates políticos na TV e sobre o horário eleitoral. Achamos tudo uma chatice e não nos importamos com o que é dito nesses “programas”. Quando os assistimos, não prestamos atenção à falta de clareza dos programas e das plataformas de Governo dos candidatos e, muitas vezes, mudamos de canal, com a alegação de que o discurso e a postura nunca mudam, que todos irão roubar porque todos “são iguais” – só não nos perguntamos iguais a quem? Quem eles representam?  Isso nos faz pensar nas eleições de cidadãos sem nenhum compromisso social e político.
A falta de inter-ação entre cidadãos e candidatos vai contra a ideia nodal do Círculo de Bakhtin, o diálogo, visto não como um diálogo qualquer, “interação face a face” e muito menos como uma concepção harmoniosa, mas uma ‘arena de vozes, onde digladiam valores sociais”, ou seja, um campo de luta, por meio do qual a performance de cada candidato fica re-velada e, em embate, conseguiremos filtrar e apreciar os valores que devem ser os vencedores, de acordo com nossa concepção ideológica.
Precisamos, de fato, digladiar nossos valores com os políticos, uma vez que eles não são superiores a nós, já que, de acordo com o Círculo, locutor e interlocutor possuem o mesmo valor. Os governantes se tornam superiores quando assim os consideramos de forma estereotipada e estes assumem tal posição ao discursar. Segundo o filósofo russo, os sujeitos esperam por uma réplica ativa na comunicação verbal e quando não a encontram, uma vez que aqueles para quem se destina o discurso se encontram inertes e passivos diante da realidade, discursam para si mesmos. Do ponto de vista da falta de diálogo entre os sujeitos envolvidos no processo, podemos responsabilizar o sistema pela nossa irresponsabilidade e pela nossa responsividade inerte, uma vez que deixar de responder diante da realidade, nada mais é que um tipo de responsividade – tenha ela que juízo de valor for. Afinal, tal sistema tem se baseado na manipulação e na tentativa de transformar seres humanos únicos e de grande valor individual em objetos reprodutores, iguais e sem vontade de exercer sua responsividade. Em outras palavras, ele (o sistema) tenta fazer do ser humano um robô, a fim de sustentar sua ordem vigente, como canta Pitty, em “Admirável Chip Novo” (2003) e como escreve Huxley, em Admirável Mundo Novo (1964).
Não estamos aqui isentando a responsabilidade dos políticos por seus atos. Isso é incontestável. Lastimável. Digno de revolta. É esse o ponto de vista desta nossa reflexão: por que nada fazemos? Por que a história se repete? Estamos apenas pensando sobre nossos atos políticos. Aqui, voltados para as urnas – o ato do voto – mas, se quisermos, num outro momento, com mais espaço, podemos pensar nos atos cotidianos como atos políticos que “refletem e refratam” o cenário político.
Mais do que não isentar os políticos, também refletimos acerca de nossa responsabilidade nesse processo, o que fica representado em nossas respostas, pelo ato do voto. Em outras palavras, isso significa dizer que “os corruptos somos nós”?, que “nós saqueamos o país”?, que “somos os responsáveis pela miséria, falta de educação e de perspectiva de alguns”? Indiretamente, sim. Afinal, se não mudamos de atitudes políticas, tanto no cotidiano quanto no ato legitimado de representatividade de nossa cidadania, o ato de votar, como exigir ou o que esperar do outro? Se, como afirma o Círculo de Bakhtin, o outro nos constitui assim como nos vemos por meio do outro, é essa a imagem que queremos de nós mesmos, como sujeitos e como nação?
As palavras são duras, mas consequentes da irresponsabilidade que se institui em nós na mentalidade do “jeitinho” e da “lei de Gerson”, desde que haja algum tipo de “vantagem” individual. Consequentes ainda tais palavras se pensarmos na resposta que demos a isso nas últimas eleições, com a eleição de “mulheres frutas”, “palhaços analfabetos” e suas campanhas voltadas a esses mesmos valores de vantagem individual e familiar via corrupção. Parece-nos que a corrupção encontra-se instituída em nossa sociedade e é sancionada positivamente pelo senso comum – que pensa e nome de “tolo” aquele que não quer tirar vantagem do outro a todo custo. Ao não analisarmos minuciosamente a plataforma e o dossiê dos candidatos, agimos com irresponsabilidade e respondemos positivamente às atitudes de irresponsabilidade governamental.
Mais que deixarmos de escolher os melhores representantes possíveis, ainda reproduzimos, no dia a dia, as atitudes praticadas por eles e condenadas por nós em nosso discurso – como, por exemplo, ao pensar e agir na esfera pública com desrespeito e descuido, como se o público fosse “de ninguém” quando, na verdade, merece ainda mais atenção e cuidado por ser de todos.
Tudo o que tem acontecido em nosso país (os escândalos do mensalão, as notas frias, os caixas 2, a eleição de figuras públicas sem qualquer tradição ou interesse na vida política até então – como artistas fracassados, “religiosos” milagrosos e outros tantos candidatos ridículos ) são simplesmente respostas à nossa resposta que geram novas respostas. E esse movimento revela  o nosso caráter de “Leonardos Patacas” (nome do protagonista de Memórias de um sargento de milícias que, ironicamente, representa, na obra, o brasileiro, na visão crítica de Manuel Antonio de Almeida).

Bibliografia:
AURÉLIO. Novo Dicionário – Século XXI – O dicionário da Língua Portuguesa. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
BAKHTIN, M. M. (VOLOSHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
BAKHTIN, M. M. (1920-1974). “Arte e Responsabilidade”. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BAKHTIN, M. M./VOLOSHINOV. “Discurso na vida e discurso na arte”. Tradução acadêmica de Carlos Alberto Faraco. Mimeo.
BOSI, A. O Ser e o Tempo da poesia. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
HUXLEY, A. Admirável mundo novo. São Paulo: Globo, 1964.
MOURA, P. “A longa luta pelo direito de voto”. Guia do Estudante – Atualidades. São Paulo: Abril, 2010, Ed. 11.
PITTY. “Admirável Chip Novo”. Admirável Chip Novo. São Paulo: DECKdisc, 2003.
SKANK. “In(dig)nação”. Skank. Minas Gerais: Independente, 1992.
SOBRAL, A. “O ato ‘responsível’ ou ato ético em Bakhtin, e a centralidade do agente”. Signum: Estudos da Linguagem. Londrina, no. 11/1, pp. 219-235, 2008.
URBANA, L. “Que país é esse?”. Que país é esse?. Rio de Janeiro: EMI-ODEON, 1989.


POLÍTICA DE EDUCAÇÃO BILÍNGUE E A ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS SURDAS
Ednalva Gutierrez Rodrigues
Universidade Federal do Espírito Santo

RESUMO
O presente artigo tem como foco discutir o projeto de implantação de escolas referência da Secretaria Municipal de Educação de Vitória, ES, materializado no documento “Educação Bilíngue: ressignificando o processo socioeducacional dos alunos com surdez, no Sistema Municipal de Ensino de Vitória, por meio do ensino, uso e difusão da LIBRAS”.  A partir dos conceitos de responsividade e enunciação, a análise busca refletir sobre os discursos presentes no documento e de que forma as relações dialógicas estabelecidas com outros discursos determinam e conformam as práticas de atendimento aos alunos surdos matriculados em turma de alfabetização.

1 – INTRODUÇÃO

Um dos grandes desafios na educação de surdos refere-se à alfabetização. Muitos surdos desejam aprender a ler e a escrever, porém acham que esse é um desejo inatingível. Considerando que a surdez não tem influência direta na aprendizagem, podemos inferir que o fracasso na escolarização do surdo está profundamente relacionado com as práticas pedagógicas que não consideram as necessidades das crianças surdas e o não uso da língua sinais pelo professor para mediar os processos de aprendizagem.

Implementar uma ‘ Política de Educação para Alunos com surdez’ no Sistema Municipal de Ensino de Vitória, atendendo as Diretrizes da atual Política Nacional de Educação Inclusiva, garantindo a implantação de um projeto educacional bilíngue, respeitando a experiência visual e linguística do aluno com surdez no seu processo de ensino-aprendizagem, utilizando a LIBRAS e a Língua Portuguesa escrita como segunda língua, resguardado o direito de opção da família ou do próprio aluno pela modalidade oral da língua portuguesa (VITÓRIA, 2008, p. 6).

Em nossa perspectiva, esse documento é um importante mediador semiótico, pois articula diferentes vozes que o atravessam, situadas em diferentes contextos sociais e históricos, construindo significados que vão nortear as práticas de atendimentos aos alunos surdos (BAKHTIN, 1981).

Inicialmente, é preciso destacar que, de acordo com a SEME, a implantação desse projeto está articulada com a discussão mais ampla feita pelo Ministério da Educação (MEC), no documento intitulado Diretrizes da Política Nacional de Educação Especial (Resolução CNE/CEB nº 2, de 11 de setembro de 2001) e com toda a legislação pertinente [1] e é resultado da intensa reflexão do grupo central da SEME, a partir do trabalho realizado nas escolas. No documento citado, o MEC define que a Educação Especial se constitui em uma proposta pedagógica com estratégias e recursos especiais que tem por finalidade apoiar e, em alguns casos, substituir o serviço educacional comum. Define também que o atendimento aos alunos com necessidades especiais, denominado serviço de apoio pedagógico especializado, poderá ser feito em salas comuns ou em salas especiais, caso haja necessidade de apoio especializado e contínuo ou dificuldades de comunicação e sinalização diferenciada dos outros alunos.

 Até o ano de 2006, esse foi o documento que orientou os sistemas de ensino quanto ao atendimento aos alunos surdos, inclusive balizando a criação de salas exclusivas para surdos onde o ensino era ministrado em língua de sinais por professores fluentes nessa língua.

Mais recentemente, no ano de 2007, o MEC apresentou o documento Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEE): versão preliminar,[1] em que define as novas diretrizes para o atendimento às pessoas com deficiência. Tentando romper com o conceito de inclusão estabelecido na política anterior, nessa perspectiva:
[...] a organização de escolas e classes especiais passa a ser repensada, implicando uma mudança estrutural e cultural da escola comum para que receba todos os alunos, atenda suas especificidades e promova a melhoria da qualidade da educação, configurando-se em resposta às diferentes situações que levam à exclusão escolar e social (BRASIL/MEC, 2007, p. 3 ).

Nesse documento, o MEC estabelece o “[...] direito de todos os alunos de compartilhar um mesmo espaço escolar, sem discriminações de qualquer natureza”. Baseado nesse princípio se posiciona a favor da Educação Especial articulada com a educação comum, tentando agregar ao conceito de inclusão o conceito de salas ou escolas heterogêneas. Pessoas surdas e pessoas ouvintes devem compartilhar o mesmo espaço, sob pena de estarem reforçando ambientes excludentes dentro da escola. Apropriando-se desse conceito de inclusão, a SEME elencou, como um dos objetivos específicos do seu projeto: promover a reorganização da sala de aula comum e o desenvolvimento das ações pedagógicas para atender às necessidades de ensino-aprendizagem das pessoas com surdez em interação com ouvintes.
Assim, podemos observar que a política bilíngüe em Vitória constituiu-se a partir de uma multiplicidade de vozes, configurando-se como “[...] um puro produto da interação social” (BAKHTIN, 2010, p.126). Ao propor a inserção de alunos surdos em sala comum com alunos ouvintes, revela uma profunda relação intertextual com a proposta do MEC, evidenciando a responsividade política da SEME perante a Lei. 
De acordo com a Secretaria Municipal de Educação, esse projeto, fundamentado “[...] na filosofia da inclusão, entendida para além da integração física, se configura em um enorme desafio para a grande maioria dos sistemas de ensino que se propõem a garantir a educação para todos” (VITÓRIA, 2008. p. 4). Porém, torna-se necessário analisar quais as ações que o projeto cria para que os alunos surdos tenham acesso ao conhecimento por meio da língua de sinais.

2 – ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO (AEE) E SALA DE AULA COMUM

A escola pesquisada atendia, em horário integral, a sete alunos surdos, sendo que dois estudavam em turma de alfabetização. O atendimento especializado era realizado em uma pequena sala, ao lado das salas de Educação Física e da biblioteca.
Para viabilizar esse atendimento bilíngue, três novos cargos foram criados: intérprete de Libras, instrutor surdo e professor bilíngue. Além de subsidiar o trabalho em sala de aula comum, esses profissionais deveriam garantir o ensino e a difusão da língua de sinais dentro da escola. Nesse aspecto, foi necessário “[...] criar tempos/espaços escolares para o ensino, uso e difusão da LIBRAS no universo escolar (alunos com surdez, demais alunos, profissionais da escola e comunidade escolar)” (VITÓRIA, 2008, p. 8). Todos os profissionais e alunos participavam das Oficinas de Libras uma vez por semana ou a cada 15 dias. Nos espaços comuns, e nas atividades envolvendo toda a escola, tanto os alunos como os profissionais se empenhavam em estabelecer uma forma de comunicação com os alunos surdos a partir do que já estavam aprendendo nas oficinas ou solicitando o apoio dos profissionais do AEE como intérprete.
Para os alunos surdos, o AEE realizado no contraturno tinha como objetivo instituir “[...] um projeto socioeducativo em tempo integral voltado para atender às necessidades educacionais especiais dos alunos com surdez” (VITÓRIA, 2008, p. 7). Assim, eles estudavam em um horário na sala de aula comum, almoçavam com o instrutor surdo e eram atendidos no AEE somente no outro turno.
Foi interessante perceber que essa estrutura de atendimento imposta pelo projeto era frequentemente burlada, não por rebeldia, mas pela necessidade de oferecer atendimento aos alunos e profissionais da sala de aula comum que iam à sala do AEE solicitar ajuda. Todos os alunos surdos ficavam na sala de aula comum sem o apoio do intérprete, contando apenas com a ajuda de alguns colegas ou dos professores que sabiam o mínimo da língua de sinais.
O não conhecimento da língua de sinais pelos profissionais da sala de aula comum é um fator que precisa ser considerado, principalmente porque o projeto da SEME prevê que eles devem possuir, apenas “[  ] conhecimentos acerca da singularidade linguística e especificidade educacional manifestada pelos alunos com surdez” (VITÓRIA, 2008, p. 9), adquiridos nas oficinas de Libras, dentro da própria escola, em horários de planejamento dos profissionais. Saber a língua de sinais e ter condições de promover interações linguísticas de qualidade com os alunos surdos é um requisito que se aplica somente aos profissionais do AEE, porém a estes não é permitido entrar na sala comum para atuar como intérpretes ou prestar apoio à professora, já que, no entendimento da SEME, a filosofia do projeto é inclusivista. Todo o apoio deve ser realizado fora da sala de aula.

Esse é um dado que revela profunda contradição entre o que está documentado e o que se efetiva na prática, pois um dos objetivos específicos elencados no projeto deixa clara a necessidade de “Garantir que o processo de ensino-aprendizagem de alunos com surdez seja realizado utilizando a LIBRAS e o Português escrito como segunda língua” (VITÓRIA, 2008, p. 6). Como promover esse processo de ensino-aprendizagem em Libras na sala de aula comum, se os únicos profissionais em condições de fazê-lo estão impedidos pela própria filosofia inclusivista defendida pela SEME?
Essas questões merecem ser repensadas porque nesse contexto, o diálogo entre professores e alunos ouvintes é garantido pela comunicação oral. Para eles, o movimento polifônico está assegurado e há a possibilidade da atitude responsiva ativa. No caso de professores ouvintes, não usuários da língua de sinais e alunos surdos, o que existe são negociações de sentido que se estabelecem com alguns gestos de apontar, estratégia usada pelos professores e pela tentativa de usar um pouco da língua de sinais aprendida nas oficinas de Libras, mas que não garantem o desenvolvimento cognitivo desses alunos, pois:
O processo de elaboração conceitual, considerado à luz do princípio dialógico de Bakhtin, configura-se como um processo de articulação, pelo confronto, de múltiplas vozes historicamente definidas, em condições de interação – compreensão/expressão – determinadas. Configura-se como um processo discursivo (FONTANA, 2008, p. 125).

Definitivamente, a mediação desaparece e os alunos surdos também.

Enfim, apesar dos esforços no sentido de ressignificar o atendimento aos alunos com surdez, não há dúvidas de que a sala de aula comum continua sendo um espaço excludente e as crianças surdas as mais prejudicadas. De fato, o projeto atende às Diretrizes da atual Política Nacional de Educação Inclusiva, porém a situação de exclusão a que esses alunos estão submetidos não possibilita o acesso ao conhecimento por meio da língua de sinais, fator indispensável para uma educação bilíngüe.

3 – BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010 [1929].
_________________ Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
BRASIL, MEC/SEESP. Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. 2001. Disponível em:<In:http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/diretrizes.pdf>. Acesso em 01 fev. 2009.
BRASIL. MEC/SEESP. Política Nacional De Educação Especial Na Perspectiva Da Educação Inclusiva: VERSÃO PRELIMINAR. Brasília.
FONTANA, Roseli A Cação. A elaboração conceitual: a dinâmica das interlocuções na sala de aula. SMOLKA, Ana Luisa e GOÈS, Cecília (Org) A linguagem no espaço escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento. Campinas: Papirus, 2008.
PREFEITURA DE VITÓRIA. Secretaria Municipal de Educação. Subsecretaria Político-Pedagógica. Coordenação de Formação e Acompanhamento à Educação Especial. Educação bilíngüe: ressignificando o processo socioeducacional dos alunos com surdez, no Sistema Municipal de Ensino de Vitória, por meio do ensino, uso e difusão da LIBRAS. Vitória, 2008.
RODRIGUES, Ednalva Gutierrez. A apropriação da linguagem escrita pelas crianças surdas. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, 2009.


A REDE NACIONAL DE FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA E SEU PROGRAMA PRÓ-LETRAMENTO: AS POLÍTICAS CONTEMPORÂNEAS PARA A FORMAÇÃO DOCENTE COMO AÇÃO RESPONSÁVEL E RESPONSIVA
Elizabeth Orofino Lucio
orofinolucio@gmail.com
Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRJ/LEDUC

Introdução

No cenário educacional nacional, as novas políticas governamentais educacionais têm como alicerce a educação á distância. Dessa forma, nesta modalidade de educação um novo elo na formação do professor da educação básica instaura-se, destacando-se uma posição específica de quem recebe a formação e deverá em seguida dela ser autor: a figura do tutor.
Destacamos a importância da atuação do tutor no contexto da EAD, pois seu papel é essencial para o desenvolvimento de cursos que apresentem alto nível de qualidade e excelência de ensino. Observamos que, devido ao desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e ás reformas educacionais, há um impulso na EAD e o papel do tutor desdobra-se em leque de possibilidades, especificamente na formação de professores, pois “ ensinar a ensinar requer estratégias mais complexas e demoradas do que as disponibilidades de capacitação oferecem. (GATTI &BARRETO, 2009)

Tecendo o tempo: A Rede Nacional de Formação Continuada de Professores e o Programa Pró-letramento

No campo educacional brasileiro a normatização efetiva da formação continuada docente ocorreu por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9394/96 (Brasil, 1996) que estipula em seu artigo 67 que os sistemas de ensino deverão promover a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério, aperfeiçoamento profissional contínuo. A tarefa do poder público nesta questão discorre que “o Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância em todos os níveis e modalidades de ensino e de educação continuada”, e nas disposições transitórias do artigo 87, parágrafo 3º. , inciso III, em que se explicita o dever de cada município de realizar “programas de capacitação para professores em exercício, utilizando, também, para isto, os recursos da educação a distância”.
A ordem do dia na política educacional na questão do formato da produção da formação de professores está inscrito em estratégias de educação a distância (EAD). Posto isto, a portaria N°
1.403, de 9 de junho de 2003, instituiu o Sistema Nacional de Certificação e Formação Continuada de Professores, que, em consonância com o documento de política educacional publicado em 1999 pelo Banco Mundial, intitulado “Education Sector Strategy” (Estratégia de Setor de Educação-World Bank, 1999), endossa a ênfase em relação à educação básica, o treinamento de professores, a avaliação em larga escala e a educação a distância.
A publicação da Portaria causou polêmica em âmbito nacional, as diversas entidades educacionais, tais como a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED), o Fórum de Diretores de Faculdades/Centro de Educação das Universidades Públicas Brasileiras (FORUMDIR), o Congresso Nacional de Educação (CONED) e o Fórum em Defesa da Escola Pública, através da 2ª Carta Protesto denominada -Formar ou Certificar?-Muitas questões para Reflexão, denunciavam que “A proposta de ‘avaliação’ do governo, neste e em outros casos, continua sem referência no projeto político-pedagógico de cada instituição e no contexto social.
A Portaria nº 1.403, apesar das críticas de inserção numa medida de desempenho docente meritocrática, continuou em vigor e a constituição da Rede Nacional de Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação, a ser integrada por centros de pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico e prestação de serviços para as redes públicas de ensino, em uma ou mais áreas de especialidade, instalados em instituições universitárias brasileiras selecionadas por meio de edital público e apoiadas pelo MEC, tem sua efetivação por meio da divulgação do edital n° 01/2003 – SEIF / MEC, difundindo as diretrizes para o encaminhamento de propostas das universidades para o Ministério da Educação.
Dando continuidade a política educacional do governo, por meio da Portaria 1.472, de 7 de maio de 2004, instituiu-se o Sistema Nacional de Formação Continuada de Professores. Em março de 2005, o Senado votou o plano de qualidade para a educação brasileira, que incluía a criação do Sistema Nacional de Formação de Professores. Institui-se então a Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação Básica, integrando centros de pesquisas de várias universidades que estavam credenciados pelo MEC como centros de formação e assim desenvolveriam materiais didáticos diversos, fundamentados e validados, destinados aos docentes da educação básica em serviço.
O programa Pró-letramento encontrava-se inserido no programa de qualidade do Ministério da Educação e “trata-se de um programa de atualização de conteúdos em Língua Portuguesa e em Matemática para os professores das séries iniciais do Ensino Fundamental. Justamente as duas áreas em que os estudantes avaliados pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB – mostraram as suas imensas dificuldades.”
Destacamos que a proposta do programa surge em um momento polêmico em que a câmara dos deputados, por meio de sua comissão de Educação, após ter constituído um grupo de trabalho integrado por especialistas nacionais e estrangeiros, recebe o relatório que analisou a situação da alfabetização no Brasil. O relatório intitulado Alfabetização Infantil: os novos caminhos expõe de forma objetiva o uso sistemático do método fônico. (BRASIL, 2004).
Planejado para ser realizado a distância, o programa Pró-letramento utiliza-se de material impresso que são os fascículos do programa, vídeos e atividades presenciais conduzidas por professores orientadores, chamados de tutores locais, preparados para a função em encontros de formação. Esses encontros são dinamizados por profissionais dos Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação, especificamente na área de Alfabetização e Linguagem, das seguintes universidades : Universidade Federal de Minas Gerais , Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Estadual de Campinas  , Universidade de Brasília e Universidade Estadual de Ponta Grossa. As equipes de pesquisadores desses centros são responsáveis pelas ações de formação em diversas regiões do Brasil que se fundamentam nos materiais de formação.

O fio teórico-metodológico: A perspectiva Bakhtiniana
A perspectiva teórica decorre do problema aqui delimitado, pois entender a constituição do programa, em tempos que o centro das discussões coloca a educação a  distância como “modelo” da formação inicial e continuada de professores, implica o entendimento de que a formação de professores dá-se em um processo histórico.
Ter como referencial teórico os estudos bakhtinianos implica no reconhecimento do papel da linguagem na constituição dos sujeitos e, também, na necessidade de uma análise dos processos discursivos que ocorrem nas diversas esferas de atividade humana, como uma possibilidade de compreensão das diferentes visões de mundo que orientam os sujeitos numa sociedade.
De acordo com Bakhtin (1993), a linguagem é “o produto da atividade humana coletiva e reflete em todos os seus elementos tanto a organização econômica como a organização sóciopolítica da sociedade que o tem gerado”. Conforme explica o pensador russo, o homem, na tentativa de dominar a natureza, interage com ela e com outros homens. Transforma e transforma-se, criando significações e sentidos. Assim, a linguagem constitui-se, para Bakhtin (1993), como uma produção social da vida humana, refletindo os elementos e as contradições de sua organização econômica, política e social.
Segundo os pressupostos bakhtinianos, o objeto das ciências humanas é o sujeito que fala; dessa forma, o texto é a única realidade imediata sobre a qual as ciências humanas podem se debruçar: “Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento” (BAKHTIN, 2003). O texto aqui é entendido em sua forma concreta, em suas condições concretas de vida, isto é, como enunciados.
O enunciado é a unidade do discurso, ou seja, da “língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto da lingüística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso” (BAKHTIN, 2008). O enunciado, por sua vez, comporta traços constituintes, os quais permitem a sua compreensão e análise.
A compreensão do enunciado ocorrerá apenas no seu entrelaçamento com a situação de interação social na qual foi produzida. Para Bakhtin, a situação não é vista como algo que envolva o enunciado, mas como parte constituinte; do mesmo modo, não se resume ao contexto imediato da enunciação, pois se inscreve numa realidade social, historicamente construída. Portanto, o enunciado comporta uma dimensão verbal e extraverbal. O horizonte extraverbal é constituído por três aspectos: o espaço e tempo no qual os enunciados são produzidos, o tema do qual o enunciado trata, a atitude valorativa dos participantes da situação de comunicação.
Na produção e análise de um enunciado está implicada a sua orientação social, o que significa que um enunciado é sempre dirigido a outro, esse endereçamento vai considerar, a relação sociohierárquica existente entre os interlocutores. É, portanto, no terreno do outro que enunciador constrói o seu enunciado, levando em conta a imagem que faz de seu destinatário.
Portanto, para entender determinado discurso sobre o programa, não basta analisarmos os aspectos sintáticos léxico-semânticos do discurso. Conhecer a significação das palavras que o compõem depende, também, de conhecermos os elementos que fazem parte da situação extraverbal, ou seja, a finalidade do discurso, o momento histórico em que foi produzido, o caráter ideológico do discurso, a identidade dos interlocutores, os discursos dos outros que se entrecruzam no interior do texto, o contexto comunicativo no qual foi produzido.
Circunscrevendo, então, nosso trabalho no princípio dialógico que norteia uma pesquisa qualitativa numa abordagem sócio-histórica, buscamos ouvir e entrelaçar as vozes dos professores tutores por meio de entrevista coletiva e analisar os discursos, documental e docente, que ecoavam no meio do programa, acerca do professor tutor e da sua efetivação na prática pedagógica das secretarias de educação do Rio de Janeiro.
Como nenhum enunciado é inaugural, ele sempre trará em seu escopo marcas dos enunciados que o antecederam. Nesse sentido, Bakhtin aponta que todos os nossos discursos são plenos de palavras alheias, as quais guardam em si a experiência e o tem valorativo do outro, que assimilamos, reelaboramos e reacentuamos conforme a nossa própria experiência. Esta assimilação das palavras de outrem adquire um sentido mais profundo na formação da consciência ideológica do homem, procurando definir as bases de nossa atitude em relação ao mundo e de nosso comportamento, funcionando como palavra autoritária ou palavra internamente persuasiva (BAKHTIN, 1998).
O conceito de enunciado e sua constituição alicerçam a análise que apresentaremos. A partir das considerações expostas, entendemos o “saber docente como um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais”. (TARDIF,2002)
Tendo em vista que a nossa pesquisa visa à compreensão da especificidade da experiência do trabalho do tutor na formação de professores alfabetizadores, entendemos que podemos compreender tais sentidos a partir das marcas discursivas presentes nos enunciados docentes.

Inacabando

Num clima de disputa e tensão, o programao inaugura a constituição de uma política governamental de formação continuada de professores, em que o contexto histórico-social realça o caráter político, ideológico e social das práticas de leitura e escrita. Por essas razões, podemos dizer que o conceito de letramento encontra-se em construção no Brasil. Assim, o Programa Pró-Letramento, ou seja, “a favor do letramento”, marca uma ação responsiva e responsável de uma diretriz educacional para as políticas educacionais de formação continuada de professores alfabetizadores no período em que a defesa do retorno ao método fônico fez-se presente no cenário nacional.
A perspectiva do conceito de letramento no Brasil evidencia que temos privilegiado a esfera da educação, considerando o letramento sempre em relação à alfabetização. O grande desafio do tempo presente é conhecer os usos da leitura e da escrita das camadas que estão nas escolas públicas brasileiras para além dos muros da escola e das avaliações e, assim, efetivar o ensino da leitura e da escrita.
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Café com pão de queijo: Uma conversa entre Mikhail Bakhtin e Renato Russo
Hannah Moreira Ferraz de Lima[9]

Disseram-me que me constituo a partir de um processo de interação com o outro. Disseram-me também, que este outro possui um excedente de visão sobre mim, que não consigo perceber em meu reflexo no espelho. Continuaram a me contar que o diálogo é a linguagem sendo formada e transformada em palavras e contrapalavras. Aprendi ainda, que para tudo existe um ato de resposta meu, uma responsividade quanto à vida e à sociedade. Bakhtin me contou tudo isso e dentre tantas outras coisas que ainda posso aprender, encontro-o me contando que tudo que pode ser feito por mim será feito por mim somente. Ninguém mais poderá fazê-lo e eu respondo a isto com meus atos.
E quando penso nas canções de Renato Russo, líder do grupo musical Legião Urbana, vem-me à memória a canção L’AVVENTURA,
“Quando não há compaixão ou mesmo um gesto de ajuda, o que pensar da vida e daqueles que sabemos que amamos? Quem pensa por si mesmo é livre e ser livre é coisa muito séria”. (Legião Urbana, 1992)

Ser livre requer de nós prudência e constância. Renato nos diz que não podemos olhar para trás sem aprendermos alguma coisa para o futuro. Estamos sempre ouvindo e falando com nosso outro e tentando livremente exercer atos corretos que não tornem o amor algo banal. E como um ser livre que era, Renato escreveu acerca da sociedade em que vivia, em uma época não muito diferente da atual, na qual os indivíduos já eram levados pela corrente desigual do capitalismo,
“[...] Nossa vida não é boa e nem podemos reclamar. Sei que existe injustiça, eu sei o que acontece. Tenho medo da polícia, eu sei o que acontece. Se você não segue as ordens, se você não obedece e não suporta o sofrimento está destinado à miséria. Mas isso eu não aceito. [...]” (Legião Urbana, 1992)

Na citação acima ele já dá sua resposta dizendo de sua não aceitação e instigando seu outro a não aceitar também esse destinar-se à miséria. Ele trata a realidade como complexa, mas possível de mudar apesar de qualquer dificuldade. Em “Fábrica” (1986) ele exerce a função de otimizar a relação social trabalhista desses indivíduos ao dizer,
“[...] Nosso dia vai chegar, teremos nossa vez. Não é pedir demais: Quero justiça, Quero trabalhar em paz. Não é muito o que lhe peço – Eu quero trabalho honesto em vez de escravidão [...]” (Legião Urbana, 1986)

Renato chama não só a mim, mas a todos os seus interlocutores a pensar e a re-pensar as políticas estabelecidas no Brasil quando diz que somos responsáveis pela Nação, cobrando-nos responsabilidade. Falamos com Renato e o ouvimos, em uma troca de enunciados e contrapalavras que nos obriga a responder acerca de nossos atos perante à vida e ao nosso meio social.
Quando Renato questiona quais são as palavras que nunca são ditas na canção “Quase sem querer” (1986), está indiretamente conversando com Bakhtin, quando o filósofo diz que,
“A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p.113)

Logo, as palavras nunca deixam de ser ditas, porque passam de mim para meu interlocutor e de meu interlocutor para mim, em um processo dialógico. Toda e qualquer palavra já foi dita por alguém e já teve sua contrapalavra. É assim que nos constituímos enquanto seres sociais.
Nas letras poetizadas de Renato ainda achamos muito de Bakhtin, quando este fala, também na canção “Quase sem querer” (1986), que não é mais criança e por isso não sabe mais sobre tudo Ora, não é isso que Bakhtin nos ensina? Que nunca sabemos e nunca saberemos tudo? Que não somos, mas que estamos sempre tentando ser? E ser requer constituição e constituição requer interação, dialogismo, o contato com meu outro, com seu outro.
Nas canções de Renato Russo, encontro tristeza, solidão, amor e denúncia Muita denúncia contestando a rua, o outro, o mundo. Ele desafiou as políticas do país com “Geração Coca-cola” (1984), “Que País é este” (1987) e tantas outras. Enquanto isso, e relacionado às canções, temos o fato de que, para Bakhtin, a denúncia à realidade é vista como uma atividade que se transforma com a sociedade,
“O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata. O que é que determina esta refração do ser no signo ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes”. (BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 2009, p.46)

Termino então esta conversa questionando que País é este em que não se respeita a constituição e ao mesmo tempo se acredita no futuro da Nação. Este País em que profissões são desvalorizadas e em que as políticas públicas são falhas. Onde estamos com nossa resposta? Onde estamos com nossa luta? Lutamos? Qual é então a sua ideologia e qual será a minha?
“[...] A humanidade é desumana, mas ainda temos chance. O sol nasce pra todos, só não sabe quem não quer. (...) Até bem pouco tempo atrás poderíamos mudar o mundo. Quem roubou nossa coragem? [...]” (Legião Urbana, 1989)

Referência
BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo; Hucitec Editora, 2009.
As Quatro Estações – Legião Urbana, 1989.
Música para Acampamentos – Legião Urbana, 1992.
Dois – Legião Urbana, 1986.
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A Charge como atitude Responsiva
Fábio Cardoso dos Santos
Doutorando pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, no programa de Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem - LAEL

O homem na arte é o homem integral.
Mikhail Bakhtin

O tema Política como Ação Responsiva, sendo um dos eixos que norteiam o evento Encontros de Estudos Bakhtinianos 2011, a partir de um dos termos-chave do círculo de Bakhtin, que tem nos intrigado e sido objeto de nossas pesquisas, apresenta-se como um instigante desafio ao abordar o ato Responsável na Educação,  na Estética e na Política. Propomos, assim, levar o leitor a uma leitura mais significativa da charge política, a fim de propiciar-lhe o entendimento dos sentidos que a constitui. Para procedermos à leitura desse gênero discursivo em que a linguagem verbal e a visual se imbricam, vejamos como se constitui etimologicamente a palavra charge. Segundo o dicionário Houaiss (2001), ela advém do latim carricare, passa para o francês como carga, datada do século XII, e por extensão de sentido como: “o que exagera o caráter de alguém ou de algo para torná-lo ridículo, representação exagerada e burlesca, caricatura, regres. de charger – carregar”. Ainda no Houaiss, define-se como um substantivo feminino: “desenho humorístico, com ou sem legenda ou balão, geralmente veiculado pela imprensa e tendo por tema algum acontecimento atual, que comporta crítica e focaliza, por meio de caricatura, uma ou mais personagens envolvidas”. Trata-se de elementos dos quais as charges são constituídas.
A charge deve ser compreendida como uma representação humorística, caricatural e de caráter político, satirizando um fato específico da sociedade. Destarte, é herdeira da caricatura e, embora tenha mudado de nome, dá continuidade a seu significado e função. Com relação à função social atribuída à charge, concordamos com a citação de Agostinho, segundo a qual a charge se constitui realidade inquestionável no universo da comunicação, dentro do qual não pretende apenas distrair, mas, ao contrário, alertar, denunciar, coibir e levar à reflexão (AGOSTINHO, 1993, p. 229).
Destacamos, na charge, a presença do humor, elemento comum que perpassa todas as formas de linguagem. Podemos considerar também a efemeridade da charge, que geralmente é esquecida diante dos acontecimentos da sociedade, mas permanece viva como memória histórica. Cagnin define-a como o desenho que se refere a fatos acontecidos em que agem pessoas reais, em geral conhecidas, com o propósito de denunciar, criticar e satirizar (CAGNIN, 19--).
Há outra característica da charge: constituir-se como instrumento de persuasão, intervindo, dessa forma, no processo de definições políticas e ideológicas do receptor, por meio da sedução pelo humor, e criando, assim, um sentimento de aceitabilidade que permite um processo de mobilização e reflexão diante dos fatos da sociedade. Segundo Cagnin, cabe à charge:
expor uma ideia, dissertar sobre um tema. Ainda que esteja ligada a um fato ou acontecimento e o represente de alguma forma, sua preocupação, ou do chargista, não é o acontecimento, mas o conceito que faz dele, ou mais comumente a crítica, a denúncia do fato, quando não procura aliciar o leitor para os seus arrazoados princípios, programas ou ideologia. (CAGNIN, 19--).
Como característica composicional a maioria das charges vem acompanhada de textos ou palavras, uma vez que o elemento linguístico se torna constitutivo de significados para explicitar e registrar sua intencionalidade ou compor o sentido humorístico e político. A charge, de acordo com Agostinho (1993, p. 228), se dirige
à ação do indivíduo dentro do social e, como consequência, necessita de vários elementos gráficos para se materializar, tais como: cenário, espaço, perspectiva, movimento, onomatopéias e, às vezes, texto verbal para completar a ação ou para dar voz aos personagens (AGOSTINHO, 1993, p. 228).

O gênero discursivo charge, segundo Bakhtin, pertence à categoria dos gêneros secundários, é uma arte e uma criação complexa, que depende de identificação imediata do leitor. Para Bakhtin (2003, p. 271), esses gêneros complexos, secundários,  suscitam no leitor uma “atitude responsiva” que pode ser “imediata ou de efeito retardado”, pois, ao perceber ou compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa frente a ele uma posição responsiva. Pode refutá-lo, acatá-lo, usá-lo. Essa posição responsiva é formada no decorrer do processo de compreensão do enunciado. (BAKHTIN, 2003, p.271)
Ainda em relação aos gêneros discursivos secundários, Bakhtin afirma que
Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) – artístico, científico, sociopolítico, etc. No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata. (BAKHTIN, 2003, p. 263). 

No gênero discursivo charge, a palavra e a imagem estão imbricadas, pois sua leitura implica a leitura de dois tipos básicos de linguagens: a verbal e a visual. Naturalmente, a linguagem verbal configura-se pelo uso de palavras e frases, e a visual pelo uso de outros recursos, como desenhos, representação de expressões corporais e faciais, etc. A entonação e a modulação da fala dão-se, também, por meio de recursos gráficos, como letras maiúsculas, tremidas, pontilhadas, etc. As cores são igualmente significativas e podem acrescentar sentidos às personagens e às palavras, enquanto as letras (grafemas) podem também ser carregadas de significação por meio da forma como são representadas: fontes diversas, tremidas, grandes, tombadas, etc. Todos esses elementos misturam-se e completam-se no ato de decodificação da mensagem pelo outro. Assim o verbal e o visual imbricam-se e, segundo Brait:
ao se ler um outdoor, um cartaz, uma charge, não se pode, de modo algum, ignorar toda informação que o visual traz, como cores, figuras, distribuição gráfica, e que empresta à constituição de sentido do enunciado concreto desses gêneros em confluência com o verbal (BRAIT, 2005, p. 72).
Para que os leitores possam compreender os discursos, críticas, ironias, sátiras que estão impressas na charge política, os elementos verbais e visuais devem estar completamente ligados, pois devemos contextualizar e procurar relacionar imagem e texto  que são partes integrantes do processo de leitura que leva à compreensão do texto chargístico. Assim, é preciso que o leitor seja capaz de relacionar as imagens e o texto, para que ele consiga proceder a uma leitura profícua, estabelecendo relações com as ideologias impressas na charge, recuperando o sentido e os valores desses discursos imbricados na sua constituição.
Dessa forma, o leitor ao final da análise deve perceber que o chargista recupera as informações da mídia para que, em seguida, possa fundi-las e direcioná-las sob a criação do gênero, dando, assim, origem à charge. As charges são criadas com base nos acontecimentos diários veiculados nas esferas discursivas da sociedade e, cabe aos leitores lê-las e interpretá-las de maneira responsável. Acreditamos que a potencialidade da charge esteja no fato de conseguirmos depreender o sentido de como o chargista quis expressar e sintetizar os fatos veiculados na mídia com base em fusões e refrações adequadas, para que pudesse criar e comentar determinado fato político por meio do gênero chargístico.

REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Aucione Torres. A charge. 1993. 330 f. Tese (Doutorado)-Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.
AGOSTINHO, Aucione Torres. A charge. São Paulo: ECA/USP, 1993.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michel Lahud ; Yara Frateschi. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
______. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. 6. ed.  São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
______. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. 2. ed. Campinas: Unicamp, 2008.
______. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2. ed. Campinas: Unicamp, 2005.
CAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos. São Paulo: Ática, 1975.
______. Carões, caras e caretas: salão de humor e de outros humores. [S.l.: s.n.], [19--]. Mimeografado.
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

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Por uma Poética Bakhtiniana
Fabrício César de Oliveira
email:
prof.fabricio_oliveira@yahoo.com.br
Doutorando Linguística – Linguagem e Discurso pela UFSCar


"Nenhuma árvore explica os seus frutos,
 embora goste que lhos comam."
[Miguel Torga, Bichos]


O homem é determinado pelo seu futuro (GERALDI). Esta grave sentença nos leva a pensar o porquê da obra de Mikhail Mikháilovich Bakhtin (1895- 1975). E a razão dela esbarra no modo como olhar o mundo – por um humanismo da alteridade (PONZIO, 2008); no como os discursos podem ser poderosos – como são empregados na cronotopia; e na maneira como a ideologia está já embebida em cada palavra, em cada diálogo – dialogia. No entanto, todas essas consequências conceituais da causa do pensamento bakhtiniano estão associadas, para nós, a uma espécie de revolução poética em sua obra. Está na ordem do discurso e nos estudos da palavra, como signo verbal, a natureza de memória de futuro que alimenta o dizer e o escrever poético, por serem os indicadores mais sensíveis das modificações e revoluções sócio-históricas e ético-estéticas.
As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto, claro que a palavra será o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais. (BAKHTIN, 1929, p. 41. O grifo é nosso.)

Há uma inversão do olhar sobre a estética/ética do mundo por Bakhtin. E parece que uma das funções da poesia deveria ser esta: a de nos fazer ver o que antes não víamos, ou nos fazer olhar de modo diferente para o mesmo, como ocorre nas poesias de Manoel de Barros que [des]inventam nosso olhar. Há uma [des]invenção antecipada do estruturalismo que vigoraria pelo século XX, em ciências humanas, através de um olhar metalinguístico bakhtiniano. Há uma revisão dos padrões filosóficos racionalistas através de uma chamada abertura causada pela crise da razão, marcada em Bakhtin, Alberto Caeiro, e também trabalhada por Rancière em Filosofia Política[10]. Além disso tudo, há uma revolução copernicana que é central na obra de Bakhtin: a visão idealista e egotista, que colocava o Eu como epicentro, dá lugar a uma relação [in]tensa do EU com Outro. Tão intensa que EU/OUTRO devem ser vistos e se verem como singularidades complementares e em diálogo, tendo o EU uma necessidade estética absoluta do OUTRO, assim como OUTRO/EU a um EU/OUTRO depende. E está nessa relação a principal fonte dos jogos discursivos, pois é na arena mínima que os diálogos ideológicos se digladiam, por interesses pessoais e globais, particulares ou sociais. Esse cronotopo mínimo constrói dialogicamente embates macro, do cotidiano à ideologia oficial.
 Apesar de instaurar, influenciar ou antecipar todas essas mudanças conceituais, em diferentes campos do saber, Mikhail Bakhtin em nenhum momento defende, claramente, uma poética, embora dê pistas dela em toda sua obra – Problema da Poética de Dostoievski (2002); A Palavra na Vida e Palavra na Poesia (2011); Arte e Responsabilidade (1919); etc. Este artigo é resultante da perplexidade que o pensamento bakhtiniano é capaz de produzir aos conhecimentos sobre poética e estudos linguísticos, mas, especificamente, na possibilidade de leitura sobre os poemas de Manoel de Barros e Alberto Caeiro, nos quais encontramos a mesma natureza poética que faz com que desinventemos nosso olhar. Muito embora, como já dito, Bakhtin não tenha defendido uma poética sua, é notada a preocupação com o lugar da palavra, a potencialidade da palavra não apenas como signo verbal, mas ideológico, social e ubíquo; por isto, para nós, poético. A própria natureza transgrediente da palavra, sua exotopia, sua polifonia, cronotopia e dialogia já extravasam o que sistematicamente se propôs a ela, como signo, muitas vezes, monológico. A natureza da palavra, em Bakhtin, nos dá margem para pensar o modo como olhar o mundo e escolher a nossa palavra como contrapalavra responsiva e o papel do poeta/autor/criador[11] como de imensa responsabilidade sobre a prosa trivial da vida.  
Dividiu-se o artigo em três partes fundamentais: primeira, para falar da construção arquitetônica, que Bakhtin faz, entorno daquilo que se entende como sendo sua poética, ou aproximações com o trabalho poético como gênero discursivo, e não somente literário; segunda, para elencar os lugares da palavra e a importância dela na construção da poética bakhtiniana; e por último, olharemos para exemplos da obra de Alberto Caeiro e Manoel de Barros buscando esclarecer a desinvenção do olhar através da teoria bakhtiniana e como a poética é determinada pelo futuro, como o homem.

1.1 A arquitetônica e os gêneros do discurso na construção de uma poética bakhtiniana

Li um livro sobre águas e meninos.

Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
(...)
Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.

[Manoel de Barros]

A arte, para Bakhtin, cria novas formas de relação axiológica com aquilo que já se tornou realidade para o conhecimento e para o ato, o que o leva a afirmar que:
Na arte nós sabemos tudo, lembramos tudo (no conhecimento não sabemos nada, não lembramos nada, não obstante a obra de Platão); mas é justamente por isso que na arte o elemento da novidade, da originalidade, do imprevisto, da liberdade tem tal significado, pois nela há um fundo sobre o qual pode ser percebida a novidade, a originalidade, a liberdade – o mundo a ser conhecido e provado, do conhecimento e do ato, e é ele que arte se apresenta como novo, é pela relação com ele que se percebe a atividade do artista como sendo livre (BAKHTIN, 1998, p. 34).

O artista, ou melhor, o autor-criador, o poeta, não se envolve com o acontecimento como um seu participante direto – pois assim, seria, então, um conhecedor e seu fator ético- mas, ocupa uma posição essencial fora do acontecimento enquanto assistente desinteressado, mas que compreende o sentido axiológico daquilo que se realiza, ou seja, o autor-criador refrata e reflete por meio da arquitetônica de suas obras as ideologias presentes na ideologia oficial e na do cotidiano.
Para se pensar uma poética bakhtiniana é preciso pensar na arquitetônica, na maneira como o autor-criador a partir do seu excedente de visão arquiteta a inter-relação entre o material, a forma e o conteúdo “dentro” de um conjunto de valorações ideológicas em uma relação cronotópica.
No que tange à teoria escrita por Bakhtin, antes de qualquer coisa, gostaríamos de ressalvar que esta pode ser vista como um continuun, pois, ao que parece, os acordes principais foram executados pelas primeiras vezes ainda na década de 20, do século passado (XX) e perpassaram por toda a sua obra. Os conceitos desenvolvidos por ele se entrelaçam e se encontram constantemente inter-relacionados e, por isso, pode-se dizer que fazem parte do todo de uma grande obra sinfônica
Para a escrita de um artigo sobre o que aqui chamamos de “a poética bakhtiniana” faz-se necessária uma incursão nas categorias bakhtinianas de arquitetônica e gêneros do discurso, uma vez que os sujeitos dos textos de BARROS e Caeiro enquanto sujeitos estéticos encontram-se inseridos no universo estético da arte literária e dessa forma fazem parte de um gênero complexo que, por sua vez, encontra-se ancorado aos valores éticos do gênero primário, ou seja, a vida se secundariza na literatura e a literatura se prioriza na vida.
De um modo geral, entendemos por totalidade arquitetônica o projeto enunciativo que envolve as questões dos atos de todo humano, sejam elas (as questões) de ordem relacional ou avaliativa. Vale ainda ressaltar que, para Bakhtin, o sujeito tem de se tornar integralmente responsível por todos os atos de sua vida.

1.2 A palavra e a poética bakhtiniana.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
(...) É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol...
[Alberto Caeiro]
A poesia, entendida aqui como a arte que é realizada por meio de palavras e não só o gênero poético em si, utiliza tecnicamente a língua linguística de modo bem particular; a poesia precisa da língua por inteiro, de todos os lados e com todos os seus elementos; ela não permanece indiferente a nenhuma nuance da palavra na sua determinação linguística. É só na poesia que a língua revela todas as suas possibilidades, pois ali as exigências que lhe são feitas são as maiores: todos os seus aspectos são intensificados ao extremo, alcançam seus limites, é como se a poesia espremesse todos os sulcos da língua, que acaba por se superar a si mesma. Mas, em sendo tão exigente com a língua, a poesia pode superá-la como língua, como determinação linguística.  A poesia não é uma exceção à lei comum a todas as artes: a criação artística definível pela relação com o material constitui a sua superação.
1.3 A poética bakhtiniana em Manoel de Barros e Alberto Caeiro

"O poeta deve saber que tem culpa
 pela prosa trivial da vida."
(Bakhtin)

Em tempos de prosaísmos a poesia liberta. Hoje, mais do que antes, a linguagem mais pura, mais próxima ao que é ontológico e orgânico à vida se faz necessária. Fica aparentemente mais fácil dizer, que estamos cercados de tempos torpes, que estamos néscios de uma transvaloração dos valores. Que estamos desejosos de ouvir filosofias e poesias que busquem uma espécie de ética biopolítica (FOUCAULT e BAKHTIN). Hoje, podemos muitas vezes dizer que estamos em uma crise de abstinência por filosofia, por poesia. Porém, a poesia e a filosofia vivem. Ambas não estão ligadas simplesmente por rima, discursam sobre linguagem, ambas acariciam a textura e a tessitura da língua em busca do revelar de cada coisa, de cada valor adotado ao signo, somado à palavra.  A poesia, a literatura, a filosofia são fontes para as ciências, pois são as manifestações mais sutis e precisas da vida. O poeta acaba por ser a antena das raças, diria E. Pound. A poesia desvela (revela) as máscaras sociais e amarras sociais em Manoel de Barros e Alberto Caeiro.
REFERÊNCIAS
BARROS, M. Memórias Inventadas: A Terceira Infância. São Paulo: Planeta, 2008.
___. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
BAKHTIN/VOLOSHINOV. Palavra na vida e Palavra na Poesia. Tradução: Fabrício César de Oliveira e Valdemir Miotello. São Carlos, Pedro & João editores, 2011. 
___.Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução: Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João, 2010.
___. Questões de literatura e estética. São Paulo: UNESP, 1998.
___. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.


O movimento de conteúdo e forma no estudo da comunicação
Francismar Formentão
Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro)
fformentao@gmail.com

Ao estudar a comunicação, sua forma e seus conteúdos, temos na mediação o processo que instaura a linguagem, e o signo ideológico representa um elo dinâmico na interação e na socialização do homem e é fator fundamental da ação material que transforma o próprio homem e a natureza. Os signos assumem forma e conteúdo, conduzindo o sentido para a materialização dos processos de comunicação.
A comunicação situa-se como um espaço de produção de discursos que se instaura no dialogismo, que “o princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso” (BARROS. In: FARACO et al, 2001, p. 33). Como gênero, assume esferas e campos de circulação e significação que recriam em signos uma materialidade específica da realidade, uma mediação da mediação.
Assim, a totalidade se determina historicamente nas mediações e pelas mediações “pelas quais suas partes específicas ou complexas – isto é, as ‘totalidades parciais’ – estão relacionadas entre si, numa série de inter-relações e determinações recíprocas que variam constantemente e se modificam” (BOTTOMORE, 1988, p. 381). Ou seja, as esferas/campos que se dialogizam, estabelecendo conteúdo e forma sígnica na produção de sentido.
O conceito de esfera da comunicação discursiva (ou da criatividade ideológica, ou da atividade humana, ou da comunicação social, ou da utilização da língua, ou simplesmente da ideologia) está presente ao longo de toda a obra de Bakhtin e de seu Círculo, iluminando, por um lado, a teorização dos aspectos sociais nas obras literárias e, por outro, a natureza ao mesmo tempo onipresente e diversa da linguagem verbal humana.  (GRILLO. In: BRAIT, 2006, p. 133-134).

Assim, a comunicação mediada, um processo de trânsito de conteúdos e formas, supera a linguagem a fim de um sentido, ou a superação da própria forma para a conclusão de um novo discurso, evidencia a obediência de uma lógica criativa, “uma lógica imanente da criação”, com os valores da produção de sentido, o contexto do “ato criador” em uma interação constante, fluída e em devir axiológico
[...] antes de tudo precisamos compreender a estrutura dos valores e do sentido em que a criação transcorre e toma consciência de si mesma por via axiológica, compreender o contexto em que se assimila o ato criador. A consciência criadora (...) nunca coincide com a consciência lingüística, a consciência lingüística é apenas um elemento, um material (...). (BAKHTIN, 2003, 179).

O conteúdo apresenta os elementos do mundo da vida, forjado em parâmetros éticos e cognitivos. Interligado, conteúdo e forma são mutuamente condicionados, produzindo sentido na própria criação. A atividade estética agrega sentidos de forma acabada, e auto-suficiente. Trata-se de um ato que passa a existir em um novo campo axiológico, num devir da interação comunicativa. Assim, o material também se condiciona com forma e conteúdo, em que o signo é o meio de expressão; o material deve ser superado, aperfeiçoado num contexto de criação em que forma e conteúdo revelam o signo em sua superação, numa mediação social.
Para compreender a comunicação e sua relação com o signo ideológico, Bakhtin determina que o signo sempre precisa ser pensado na sua materialidade, não separando a ideologia desta realidade material, integrando-o às formas concretas da comunicação social organizada e também não dissociando a comunicação e suas formas da base material da sociedade (BAKHTIN, 1995, p. 44).
Para Bakhtin, o embate ideológico localiza-se no centro vivo dos discursos, seja na forma de um texto artístico, seja com intercâmbio cotidiano da linguagem. Na vida social do enunciado (seja ela uma frase proferida verbalmente, um texto literário, um filme, uma propaganda ou um desfile de escola de samba), cada “palavra” é dirigida a um interlocutor específico numa situação específica, palavra essa sujeita a pronúncias, entonações e alusão distintas. (STAM, 2000, p. 62).

Constituímos campos sociais, esferas de circulação criativa de signos, ou comunidades semióticas, importando os significados das palavras e seu conteúdo ideológico, ou sentido constituído na interação. O sentido refratado e refletido signicamente tem nas marcas ideológicas a materialização das esferas e dos campos sociais, demonstrando objetivamente a forma ideológica determinada por um horizonte social de uma época (espaço/tempo) e de um grupo social que carrega um índice de valor (conteúdo) (BAKHNTIN, 1995, p. 44). Juntos, forma e conteúdo, na interação social, produzem sentido ideológico que, na sua época, axiologicamente tenciona as tramas das diversas esferas ideológicas e dos campos sociais.
Assim, não podemos separar conteúdo-forma e processo, eles são condição de interação e entendimento deste processo e a posição material do humano na linguagem. Excluir a dimensão histórica e social, desconsiderar a relação conteúdo e forma, promove simplificações e pensamentos superficiais. Não podemos falar de conteúdo sem falar da forma que determina este conteúdo, não podemos falar de comunicação sem falar de linguagem que é o suporte material de toda a comunicação.